Entrevista

Bernardo de Assis fala sobre viver homem trans em Salve-se Quem Puder: “abertura de portas muito relevante”

O ator vive Catatau na trama de Daniel Ortiz, que retorna no ano que vem

Publicado em 09/10/2020

Em Salve-se Quem Puder, Bernardo de Assis vive Catatau, motoboy da Labrador que é apaixonado por Renatinha (Juliana Alves). Na trama de Daniel Ortiz, o rapaz faz de tudo para chamar a atenção da moça, mas ela só tem olhos para Rafael (Bruno Ferrari).

Depois da pausa nas gravações da novela das sete da Globo por conta da pandemia da Covid-19, Bernardo de Assis comemora a volta aos estúdios para concluir a história. E também celebra o fato de ser o primeiro homem trans a interpretar um homem trans numa novela.

Bernardo já esteve em outras produções de televisão, como nas séries Transviar e Todxs Nós, mas acredita que a novela da Globo tem um maior alcance para que as pessoas compreendam mais sobre ser um homem trans. Na entrevista abaixo, ele fala da novela e conta detalhes de sua vida.

Quem é o Bernardo de Assis?

Um aquariano de 25 anos nascido em Inhaúma, no subúrbio do Rio, e que desde criança já sabia que seria artista.

Como surgiu a arte em sua vida?

Eu devia ter uns cinco anos de idade quando, em um passeio da escola, fui ao teatro pela primeira vez. Não me lembro de muitos detalhes do espetáculo, mas a sensação que senti ao olhar o palco, os atores, é algo que jamais esqueci. Naquele momento eu já sabia que faria isso da minha vida.

Como você define o Catatau?

Catatau é um cara super do bem e está sempre disposto a ajudar o pessoal da Labrador. Ele é meio desastrado, mas ganha uma enorme confiança quando encontra Renatinha, por quem é completamente apaixonado.

O seu personagem na trama é um homem trans. E você é um homem trans. Qual é a importância dele em sua carreira? E de ser o primeiro homem trans a interpretar um personagem na mesma condição?

Catatau é meu primeiro personagem na TV aberta, mas já interpretei personagens trans em outras produções e todas elas foram fundamentais para que eu o encontrasse. Estar em uma novela em rede nacional faz com que corpos trans sejam vistos e naturalizados na TV. É uma abertura de portas muito relevante.

Como foi a sua transição?

Foi um divisor de águas, um marco na minha vida. Se escuta muito, no imaginário de transição, sobre “algo que falta nas pessoas trans”. Mas eu costumo dizer que o meu quebra-cabeças sempre esteve completo. Todas as peças estavam ali, só que bem embaralhadas e confusas. E, ao me entender enquanto trans homem, as peças se alinharam e fizeram sentido. Eu sempre fui eu. Mas agora, muito mais feliz!

Em entrevista à Folha de São Paulo, você falou que não teve apoio familiar. Mas de onde veio essa força que você demonstra em seu olhar?

Vem da certeza de quem eu sou, do conhecimento de mim mesmo. Acho que quando existe essa compreensão de si, essa força que vem de dentro se intensifica.

Você pensou em desistir?

Tiveram alguns momentos bem difíceis, confesso. Mas ao invés de desistir, preferi continuar e tornar real a minha possibilidade de existência.

Você tem medo de andar nas ruas, já que o nosso país é o que mais mata LGBT no mundo?

Na maior parte do tempo estou em estado de atenção. A gente nunca sabe o que ou quem encontrará nos espaços. Estou consciente dos privilégios que tenho por ser branco, ter “passabilidade” e não ser reconhecido enquanto trans imediatamente, então sei que em alguns lugares tenho um acesso um pouco mais seguro.

Mas é importante reconhecer que corpos trans estão sempre em vulnerabilidade. Justamente por isso a decisão de criminalizar a LGBTfobia é uma grande conquista, já que casos de violência contra pessoas LGBTI+ que chegam na mídia são muitos e ainda assim não retratam a realidade que a gente vive.

Você sentiu algum receio em relação a esse período em que você ficou em quarentena?

Acredito que todos sentimos, principalmente quando presenciamos o adoecimento e a partida de pessoas próximas.

Qual foi a maior lição que você tirou durante esse período pandêmico?

Entendi que a pandemia atingiu o mundo de forma ampla, mas que os efeitos dela se intensificam quando falamos de pessoas em estado de vulnerabilidade. É preciso olhar para elas, entender como mudar essa estrutura tão estabelecida e continuar cobrando de autoridades e governos responsabilidade por isso.

Como está sendo reencontrar com o Catatau em um “novo mundo”?

Está sendo interessante entender essa nova dinâmica de gravação. São muitos protocolos de segurança e toda a equipe da novela está sendo bastante cuidadosa. Essa situação, que poderia ser difícil e delicada, tento enxergar como um aprendizado.

Você voltou a gravar as suas cenas nos Estúdios Globo. Sentiu algum tipo de insegurança em relação a composição do personagem? Já que o Catatau é uma personagem de composição, e você ficou muito tempo sem exercitar esse papel…

Pelo contrário. Eu voltei com ainda mais segurança em relação ao Catatau já que eu estava morrendo de saudades dele. Além disso, sentia muita falta de ter uma rotina de gravação, mas continuei estudando e buscando referências nesse período.

Qual o seu maior sonho?

Por muito tempo em minha vida eu estive em lugares temporários, me mudando a cada trabalho. Por isso, gostaria de ter um espaço meu, entender e construir o meu conceito de lar.

O que tira você do sério?

Descaso e injustiça. Principalmente quando observamos o atual contexto do Brasil.

Se você pudesse deixar uma mensagem para a posteridade… Qual a mensagem você deixaria?

Entender quem é você e a força que você pode tirar disso é a resposta para a revolução.

Qual é o mundo que você sonha para a humanidade?

Eu gostaria de pensar em um mundo que já é possível. Não precisa ser utópico. Nele, o egoísmo pesa menos e a igualdade de direitos, as existências e individualidades são respeitadas.

Catatau vai conseguir conquistar a Renatinha?

Ele não vai poupar esforços para isso mas não posso dar muitos detalhes (risos). O que consigo garantir é que Daniel Ortiz escreveu cenas incríveis para os dois.

Deixe um recado para quem está iniciando a transição nesse exato momento… Já que não é fácil, né?

Saiba que você não está sozinho! Pode não ser fácil, mas é libertador.

*Entrevista realizada pelo jornalista André Romano

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