Sem folia

Globo maltrata nossa memória na reprise dos desfiles de Carnaval

Compacto da participação histórica das escolas de São Paulo e do Rio de Janeiro deixou muito a desejar

Publicado em 15/02/2021

Diante da inexistência de desfiles das escolas de samba este ano, pareceu uma grande ideia a TV Globo aproveitar seu imenso acervo para a reprise nas madrugadas dos momentos que marcaram a história dos sambódromos do Rio de Janeiro e de São Paulo.

Foram selecionados 28 desfiles, 14 em cada noite para o chamado Desfile Nº 1 Brahma, um projeto da agência de publicidade Africa. Entretanto, em vez de matar a nossa saudade e agradar nossa memória afetiva com esse patrimônio do Carnaval, o que ficou foi uma grande frustração.

A exibição poderia ter sido um especial bem feito e bem produzido, com momentos inesquecíveis das duas passarelas do samba. Afinal, estava tudo ali para ser um grande show: os melhores desfiles desde os anos 1980 na prateleira, um patrocinador poderoso bancando o projeto e uma audiência cativa, fã dos desfiles, que ficou sem alternativas de folia por conta da pandemia.

Ademais, a Globo incluiu anos a fio no seu catálogo de conteúdo para exportação a venda de compactos dos desfiles no Brasil, sempre com qualidade de som e imagem dignos de viajarem pelo mercado internacional.

A Globo tem também a expertise da recuperação de seus arquivos desde 1980, quando estreou o Vale a Pena Ver de Novo, para reapresentação das novelas na grade vespertina. Nos anos 2010, abraçou o conceito de canal de revival com a chegada do Viva na TV por assinatura, um sucesso retumbante.

E, atualmente, o grupo promove outro rentável resgate de sua história de dramaturgia por meio de atrações no Globoplay, seu serviço de streaming. Portanto, não se esperava que problemas com áudio ou imagem do material pré-HDTV pudessem se constituir num problema.

Evolução

Tecnicamente, a emissora evoluiu na cobertura do Carnaval a partir de 1988. Foi quando uma câmera móvel, presa por um trilho no alto do Sambódromo, passou a mostrar o desfile na Marquês de Sapucaí em sua extensão.

Em 1993, o som passou a ser transmitido em UHF, o que possibilitou captação do áudio por setores (bateria, arquibancadas etc.). Em 2002, a emissora começou a captar o Carnaval em alta definição.

No entanto, ainda que a qualidade de imagem impressione mesmo nos desfiles dos anos 80, o desfile da Vai-Vai de 2008 ainda apareceu no especial com cortes nas laterais, sem a expansão da tela na proporção 16:9 do HD (a proporção típica do cinema que migrou para a tela da TV digital).

Outro incômodo do especial dos desfiles foi o áudio sobreposto de alguns dos sambas-enredo, que não era o som original. Isso, aliado às sequências de imagem um tanto aceleradas da evolução de cada escola, tornou bem difícil a compreensão de cada enredo.

Como apresentadores da atração, que adentrou as madrugadas do domingo (14) e da segunda-feira (15), a emissora destacou dois nomes de carisma ligados às últimas transmissões carnavalescas: o especialista Milton Cunha e o ator Ailton Graça.

Ambos foram colocados num pobre cenário de chroma-key de cores berrantes e em movimento. Faltou naturalidade aos diálogos e os comentários enxertados durante os desfiles como se feitos ao vivo pecavam pela superficialidade. Enfim, tudo muito forçado.

Quem esperava curtir sua escola se deparou com todo tipo de desfile grandioso reduzido a um compacto mal ajambrado, com cortes aleatórios na edição, ausência do som original, uma desconexão entre imagem e áudio.

Sem informações

Economizaram tanto no roteiro e em pesquisa que faltaram informações básicas sobre cada desfile, só restando ao pobre telespectador em isolamento e sem Carnaval as idas frequentes ao Google para ter informação sobre quem ganhou e quem perdeu em cada ano mostrado.

Pior, ainda: resolveram alternar escolas de São Paulo a escolas do Rio de Janeiro. Obviamente, inexiste simetria entre elas. Não é justo nem recomendável colocar o desfile da paulistana Colorado do Brás perto de um desfile da Beija-Flor – com todo meu respeito pelos foliões e pela história do amado bairro do Brás.

Há discrepância e desequilíbrio gritantes entre o tamanho e investimentos das agremiações do Rio e de São Paulo.  São espetáculos tão distintos que, nos anos de programação normal, dois dias são exclusivos para transmissão na Globo dos desfiles principais de São Paulo (sexta-feira e sábado de Carnaval) e dois dias são de transmissão do grupo principal do Rio (domingo e segunda-feira).

Vale destacar que a menor opulência não tira o brilho próprio do desfile de São Paulo, já que a tradição dos bairros se faz muito presente na disputa, ultimamente alavancada também pela entrada de escolas ligadas a torcidas de futebol.

E por mais que os desfiles do Rio de Janeiro sejam mesmo a oitava maravilha do mundo moderno, em se tratando de audiência de TV, quem manda é o desfile paulistano.

Ano após ano, o desfile de São Paulo é que lidera a audiência – e o mercado paga pelo patrocínio com base na audiência na Grande São Paulo, ainda que a Liga das Escolas de Samba do Rio de Janeiro seja muito mais sábia ao valorizar sobremaneira o seu produto na negociação com a TV.

Convém reiterar que, assim como a TV aberta, o Carnaval também é um grande negócio, com ampla força profissional envolvida e gente que trabalha o ano todo para a realização dos desfiles.

E aqui ainda sobra outro porém. Não há motivo fora a simpatia pessoal pela cantora que justifique a escolha dos desfiles da Grande Rio de 2017 em homenagem a Ivete Sangalo como um dos grandes momentos da escola na Marques de Sapucaí.

As favoritas

De acordo com a Globo, a escolha dos sambas foi feita por curadores especializados, com apoio das Ligas do Rio e de São Paulo e das próprias escolas de samba.

A emissora promoveu no site do Gshow uma votação online para escolha do melhor desfile de todos os tempos em cada um dos estados, cujo resultado foi anunciado ao final da transmissão de domingo, com os vencedores sendo: Gaviões da Fiel (2003, São Paulo) e Beija-Flor (1989, Rio de Janeiro).

Para quem perdeu, esta foi a relação das escolas escolhidas para o revival:

Desfiles de São Paulo
1. Águia de Ouro (2020) – “O poder do saber”
2. Mancha Verde (2019) – “Oxalá salve a princesa”
3. Mocidade Alegre (2014) – “Andar Com Fé Eu Vou… Que a Fé Não Costuma Falhar”
4. Acadêmicos do Tatuapé (2018) – “Maranhão: Os Tambores Vão Ecoar Na Terra da Encantaria”
5. Unidos de Vila Maria (2017) – “Aparecida – a rainha do Brasil – 300 anos de amor e fé no coração do povo brasileiro”
6. Dragões da Real (2017) – “Dragões canta Asa Branca”
7. Rosas de Ouro (2005) – “Mar de Rosas”
8. Tom Maior (2009) – “Uma nova Angola se abre para o mundo. Em nome da paz, Martinho da Vila canta a liberdade”
9. Império de Casa Verde (2005) – Brasil, se Deus é por nós, quem será contra nós”
10. Barroca Zona Sul (2020) – “Benguela, a Barroca clama a ti, Teresa”
11. Gaviões da Fiel (2003) – “Cinco deusas encantadas na corte do rei”
12. Colorado do Brás – 2019 – “Hakuna Matata, isso é viver”
13. Vai-Vai (2008) – “Vai-Vai Acorda Brasil”
14. Acadêmicos do Tucuruvi (2011) – “O Xente, o que seria da gente sem essa gente, São Paulo, a capital do Nordeste”

Desfiles do Rio de Janeiro
1 – Acadêmicos do Salgueiro (1993) – “Peguei um Ita no Norte” (Explode Coração)
2 – Mocidade Independente de Padre Miguel (1990) – “Vira Virou, a Mocidade Chegou”
3 – Unidos do Viradouro (1998) – “Orfeu – O Negro do Carnaval”
4 – Beija-Flor (1989) – “Ratos e Urubus, Larguem a Minha Fantasia”
5 – Portela (2017) – “Quem Nunca Sentiu o Corpo Arrepiar ao Ver Esse Rio Passar”
6 – Unidos da Tijuca (2010) – “É Segredo”
7 – Imperatriz Leopoldinense (1989) – “Liberdade! Liberdade! Abra as Asas Sobre Nós”
8 – Estação Primeira de Mangueira (2016) – “Maria Bethânia, a Menina dos Olhos de Oyá”
9 – Unidos de Vila Isabel (1988) – “Kizomba, Festa da Raça”
10 – Mocidade Independente de Padre Miguel (1985) – “Ziriguidum 2001”
11 – Beija-Flor (2011) – “A Simplicidade de um Rei”
12 – Acadêmicos do Grande Rio (2017) – “Ivete do Rio ao Rio”-
13 – Unidos do Viradouro (2020) –  “Viradouro de Alma Lavada” 
14 – Império Serrano (2004 – reedição do samba de 1964) – “Aquarela Brasileira”

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