Crítica de TV

O Sexo dos Anjos atende aos nostálgicos, mas é inegável o anacronismo da proposta

História criada nos anos 1960 foi transposta da década de 1920 para o fim do século

Publicado em 22/08/2023

Em junho, o Canal Viva deu sequência a um ciclo extraoficial de reprises de novelas das 18h da década de 1980, ao estrear O Sexo dos Anjos, de Ivani Ribeiro, depois de apresentar na faixa das 14h40 Amor Com Amor se Paga (1984), da mesma autora; Pão-pão, Beijo-beijo (1983), de Walther Negrão; e Bambolê (1987-1988), de Daniel Más, inspirada na obra de Carolina Nabuco. A última novela que não foi ao ar na TV Globo às 18h e o Viva apresentou nessa faixa, até aqui, foi O Salvador da Pátria (1989), de Lauro César Muniz, no decorrer de 2021.

Reedição de O Terceiro Pecado, que Ivani escreveu para a TV Excelsior em 1968, durante seu ciclo ininterrupto de mais de 10 histórias ao longo de cinco anos, O Sexo dos Anjos foi exibida pela TV Globo de setembro de 1989 a março de 1990, em pouco mais de 140 capítulos. Seu diretor-geral foi Roberto Talma, que simultaneamente foi responsável pela atração das 19h, Top Model, de Walther Negrão e Antonio Calmon.

Por falar em Top Model, tanto esta quanto Tieta (1989-1990), de Aguinaldo Silva, Ana Maria Moretzsohn e Ricardo Linhares, inspirada na obra de Jorge Amado, cartaz das 20h da mesma época estreado um mês antes, disputaram nomes do elenco global com a história de Ivani. Arlete Salles, Joana Fomm e Luciana Braga, por exemplo, foram deslocadas para a novela das 20h, ao passo que Malu Mader deixou de protagonizar às 18h para fazê-lo às 19h.

Felipe Camargo e Isabela Garcia
Felipe Camargo e Isabela Garcia em O Sexo dos Anjos

Passada na década de 1920 em sua versão original, O Sexo dos Anjos foi transposta para a atualidade da segunda versão (ou seja, o fim dos anos 1980). Possivelmente a decisão teve influência do fato de que na ocasião o horário das 18h vinha de duas novelas de época não exatamente marcadas pelo sucesso – Vida Nova (1988-1989), de Benedito Ruy Barbosa, e Pacto de Sangue (1989), de Regina Braga. No entanto, talvez essa não tenha sido a melhor escolha para a história que havia para ser contada.

A pouco mais de 10 anos para a virada do século, um enredo centrado na missão de um Emissário (Felipe Camargo) da Morte (Bia Seidl), que precisa fazer passar desta para uma melhor uma mocinha que de tão boa e correta é chata, Isabela (Isabela Garcia), soa até anacrônico, especialmente em comparação com a atração contemporânea das 19h, que tratava dos dramas e delícias da juventude dos anos 1980 de uma forma bastante mais atraente.

Durante sua temporada na Terra sob o nome de Adriano, inspirado pelo famoso romance de Marguerite Yourcenar ‘Memórias de Adriano’ que vê numa farmácia, o Emissário tenta a todo custo convencer sua chefe, a Morte, de que seria melhor levar em lugar de Isabela a insuportável e mimada Ruth (Sílvia Buarque), que humilha os empregados, espezinha o namorado Cássio (Rodolfo Bottino), faz gato e sapato da mãe, Leonor (Myriam Pérsia), e parece mais filha da tia, a megera de meia-idade, Vera (Norma Bengell).

Somente uma prima de Leonor e Vera, Francisquinha (Eloísa Mafalda), que vai do Mato Grosso do Sul para o Rio de Janeiro participar de um concurso de lambada – em que pese o fato de já ter dobrado o Cabo da Boa Esperança, como ela mesma diz, e constitui um dos poucos destaques verdadeiramente positivos numa história sem maiores atrativos, é que por bom tempo da trama é a única pessoa que diz algumas verdades para a chatíssima Ruth de vez em quando. Aqui o destaque positivo é também o trabalho de Sílvia Buarque, que de tão bem no papel nos faz detestá-la cena a cena.

Vera, a megera de meia-idade citada há pouco, tem por esporte dominar tudo e todos à sua volta, especialmente a irmã, uma fraca, e o filho, mais fraco que a tia, Zé Paulo (Irving São Paulo). O rapaz entra numas de se apaixonar perdidamente pela caixa de supermercado Gigi (Carla Marins), que é mesmo muito interessante e boa moça, mas que não tira da cabeça o crápula que a usou e jogou fora.

Tomás (Marcos Frota), Otávio (Humberto Martins) e Ruth (Sílvia Buarque) em O Sexo dos Anjos
Tomás (Marcos Frota), Otávio (Humberto Martins) e Ruth (Sílvia Buarque) em O Sexo dos Anjos

Este não é ninguém menos do que Otávio (Humberto Martins em sua primeira novela), primo de Zé Paulo, filho de Leonor e do falecido Teófilo Muniz (Daniel Filho), sempre evocado como grande homem, grande caráter, grande pai, grande político, e que na verdade era um “salafra” de boa marca. Voltando a Gigi, as muitas idênticas cenas da moça perturbada pelo pai, o mecânico Antônio (Stepan Nercessian), em razão da humilhação sofrida por ela, que leva o homem a odiar todos os ricos do mundo, abusam um pouco do espírito da reiteração que toda novela tem naturalmente.

Tentativas de comédia com Roger (Otávio Müller) – ou Rogê, como se queira -, rapaz que Isabela namora no início da novela sem muita convicção, impactada desde logo pela presença de Adriano, que se emprega como professor de tênis dela e de Ruth, e o atrapalhado Aranha (Tonico Pereira), detetive contratado por Roger para descobrir tudo sobre o rival, acabam não funcionando como poderiam – em que pese o talento comprovado dos atores, diga-se.

Paulo Figueiredo surge em cena como Durval, um médico apaixonado por Leonor, pai do filho mais velho dela, Tomás (Marcos Frota), que é surdo e tem uma sensibilidade apurada, a ponto de se comunicar com Adriano de mente para mente e, por isso, saber suas reais intenções para com Isabela.

Ocorre que Durval é alvo do amor de Vera, que não sabe que o médico é a paixão da juventude da irmã e pai de seu sobrinho, homem que ela qualifica da pior forma para magoar Leonor sem saber de quem se trata. Um papel que fica abaixo do que o ator àquela altura já havia demonstrado ser capaz de fazer em novelas: não há muito a ser feito no caso de Durval além de se dividir entre as duas irmãs, Leonor e Vera.

Adriano (Felipe Camargo) e Anjo da Morte (Bia Seidl) na novela O Sexo dos Anjos
Adriano (Felipe Camargo) e Anjo da Morte (Bia Seidl) na novela O Sexo dos Anjos

Muito bonita em cena, Bia Seidl interpreta uma Morte séria, finamente irônica, que trata sua obrigação de “levar” as pessoas da Terra como o trabalho que desempenha e só. Mas ela também cai na armadilha do amor ao se ver interessada por Renato (Mário Gomes), um ambientalista perseguido na Amazônia que assume a identidade do Padre Aurélio (Stênio Garcia), cunhado de Leonor, o tio com quem Isabela sempre se correspondeu.

São interessantes as frases por vezes até ácidas da Morte sobre o planeta e seus habitantes, as tragédias naturais ou não que tiram diversas vidas e coisas assim. Nesses momentos surge uma Ivani Ribeiro “de sempre”, afiada, empolgada. Mas eles não são tantos assim, embora frequentes no primeiro terço da novela.

A concessão que Diana – nome adotado pela Morte na Terra – faz a Adriano é a de que Isabela morrerá quando cometer o terceiro pecado, e cabe a ele ajudar nesse cometimento o mais breve possível. Nas cenas dos dois surge o título desejado por Ivani para esta releitura: A Hora e a Vez, em alusão àquilo que nenhum de nós pode evitar, afinal, todos têm sua hora e sua vez de morrer.

Isabela (Isabela Garcia) e Adriano (Felipe Camargo) em O Sexo dos Anjos
Isabela (Isabela Garcia) e Adriano (Felipe Camargo) em O Sexo dos Anjos

Embora supostamente deteste Adriano acordada, incomodada com sua constante presença e as confusões que se instalam em sua vida depois do aparecimento dele, Isabela se comunica docemente com o rapaz em seus sonhos, os quais o Emissário utiliza para tratar claramente com ela sobre sua missão, seu amor e o desejo de que eles possam transpor essa barreira para poderem ser felizes juntos.

Mário Gomes teve momentos bastante festejados em sua trajetória na TV – sem exagero, Guerra dos Sexos (1983), de Silvio de Abreu, e Vereda Tropical (1984-1985), de Carlos Lombardi, com argumento e supervisão de Silvio, por exemplo. Não se pode dizer o mesmo de O Sexo dos Anjos, embora também se deva dizer que o ator até se segura um pouco, digamos, quando comparamos com trabalhos como A Lua me Disse (2005), de Maria Carmem Barbosa e Miguel Falabella, ou O Profeta (2006-2007), de Duca Rachid e Thelma Guedes, inspirada em Ivani.

Renato/Padre Aurélio (Mário Gomes) e Cuca (João Rebello) em O Sexo dos Anjos
Renato/Padre Aurélio (Mário Gomes) e Cuca (João Rebello) em O Sexo dos Anjos

O ambientalista Renato, que passa boa parte da novela fingindo ser Padre Aurélio, e é acompanhado de perto por Vera, que o hospeda bastante a contragosto, desconfiada desde logo de que algo de errado havia com o tal padre, é um personagem interessante, em tempos de assassinato de Chico Mendes ainda fresco. Mas a novela apenas aproveita essa “atmosfera” alusiva ao acreano vítima da sanha de grileiros, e Mário Gomes fica um pouco deslocado do personagem todo o tempo, por mais que se saiba que o padre não é padre.

Por falar em Vera, Norma Bengell era sim uma atriz de talento, especialmente comprovado em seus trabalhos na tela grande, da qual se tornou um dos mais célebres nomes do século 20 no Brasil e mesmo fora dele, durante o tempo em que viveu na Europa. Bonita, nem se discute que fosse – e claro que isso contou para sua escolha para o papel da vilã.

Todavia, pouco habituada ao trabalho em TV, ao contrário do cinema, ainda que correta no papel causa algum estranhamento na pele de Vera. O que não acontece, por exemplo, ao vermos a atriz como Irene, em Partido Alto (1984), novela de Aguinaldo Silva e Glória Perez, dirigida pelo mesmo Roberto Talma de O Sexo dos Anjos.

A trilha sonora acaba abusando de algumas músicas – ‘Amigo do Amigo’ (Skowa e a Máfia), ‘Onde o Amor me Leva’ (Rosana), ‘Namorar’ (Cláudia Olivetti)… Não direi que é exceção porque algumas composições realmente acabam bastante mais executadas do que outras, que por vezes nem ouvimos, ou muito pouco ouvimos, no decorrer dos capítulos, semana a semana, mês a mês, por meses. No mesmo ano de 1989 ‘Bem que se Quis’, de Marisa Monte, tocava dia sim, dia também em O Salvador da Pátria, por exemplo. Mas que “o amigo do amigo do amigo do amigo do amigo” torra, torra.

Em suma, O Sexo dos Anjos diverte e seguramente agrada quem a viu quando inédita, provavelmente, agora que a novela ganhou de novo a telinha. A tal da “memória afetiva”, que existe de fato. Meus irmãos que giram pela casa dos 40 anos e a pegaram no ar crianças, ou adolescentes, talvez gostassem de revê-la. Todavia, para uma autora que nos ofereceu na TV Globo a bastante divertida A Gata Comeu (1985) e os grandes clássicos “que todo mundo ama” Mulheres de Areia (1993) e A Viagem (1994), para citar apenas releituras de sua própria obra, a empreitada de 1989-1990 fica aquém.

Por mais que o horário das 18h deva ser em geral “mais leve”, essa é uma história escrita com um olhar anacrônico, obsoleto, um pouco moralista demais, e fantasioso demais para dias tão conturbados, de reencontro do País com a democracia pelo voto direto, primeiros tempos de uma nova Constituição, graves problemas econômicos, perspectiva de um novo mundo com o fim da Guerra Fria etc.

Quem sabe com a trama ambientada novamente no início do século a coisa desse mais certo, já que sua leveza calharia com a localização histórica. Mesmo calcada na realidade, novela é ficção, claro. Mas a depender da época, quando não conversa muito com o que se vive na realidade, ao deslocar-se demais pode haver ruído na comunicação. Parece ter sido o caso.

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