Crítica

Cia dos Atores reprocessa em Julius Caesar signos, histórias e piadas longe do lugar comum

Grupo celebra 35 anos de carreira recontando clássico de Shakespeare no palco do Sesc Consolação

Publicado em 05/07/2024

À primeira vista, Julius Caesar – Vidas Paralelas, espetáculo em cartaz no palco do Teatro Anchieta do Sesc Consolação, na Consolação, região central de São Paulo, poderia ser mero espetáculo de pretensões metalinguísticas em que tanto a obra de William Shakespeare na qual se baseia, A Tragédia de Júlio César, quanto a história que pretende contar – a de uma companhia de teatro em processo de ensaio para a montagem – resultariam meramente decorativas.

Contudo, a montagem, que celebra 35 anos de trajetória da carioca Companhia dos Atores, é não só mais ambiciosa, como mais bem sucedida do que sua premissa faz supor. Isso porque tanto a tragédia shakespeariana quanto a história da exposição das entranhas de uma companhia de teatro em pleno processo criativo são essenciais para a montagem em cena.

O (ótimo) texto de Gustavo Gasparani tem fôlego o bastante para delinear com interesse todas as personagens e dar embasamento dramático para suas questões interiores que transbordam em cena a partir de questionamentos sobre o ofício do ator, o processo de envelhecimento, o machismo, o sexismo, o etarismo e tantos outros tópicos que surpreendentemente se irmanam com fluidez à história do imperador romano.

O espetáculo triunfa mesmo quando se deixa levar por clássica armadilha deste tipo de produção, quando, ao contar duas histórias simultaneamente, uma invariavelmente se sobrepõe à outra. Ciente da qualidade de seu texto, Gasparani – que também assina a direção – não se deixa intimidar, e mergulha de cabeça no melodrama de suas personagens, mostrando que mesmo sem utilizar de Shakespeare, a peça se mantém interessante.

Isio Ghelman e Suzana Nascimento em Julius Caesar - Vidas Paralelas
Isio Ghelman e Suzana Nascimento em Julius Caesar – Vidas Paralelas

A montagem tem o mérito de não apelar para simplificações e obviedades em uma tentativa – geralmente frustrada – de simplificar ao máximo a obra do bardo para buscar alguma identificação com a plateia. A companhia deposita confiança na obra original que se mostra ainda relevante e, mesmo que se deixe levar por um ou outro jogo de plateia mais pueril, comunica com fluidez a plateia.

Mérito, claro, do ótimo elenco que foge a quaisquer estereótipos ao narrar a história de uma companhia em processo de montagem enquanto uma diretora realiza um processo longo, extenuante e cansativo para definir seu elenco e realizar a montagem. Mesmo com algumas reflexões sobre o período da pandemia de Covid-19 que já soam um tanto datadas, a peça consegue guiar a plateia pelos bastidores do fazer teatral, expondo as dores e as delícias de um grupo independente que, apesar de premiado, ainda tem dificuldades de se manter sustentável.

Isio Ghelman e César Augusto são os dois grandes destaques da montagem em registros completamente díspares. Enquanto Ghelman, que levou o troféu de Melhor Ator Coadjuvante na 18ª edição do Prêmio APTR, constrói uma personagem atormentada por seus fantasmas e expansivo, buscando uma tábua de salvação na escalação de um protagonista, Augusto investe em tons mais leves, mesmo quando sua personagem atinge picos dramáticos. O ator mergulha sem medo, mas sem jamais esbarrar no melodrama.

Suzana Nascimento também se sai bem como a atriz e diretora encurralada pela carreira. Enquanto faz sucesso na novela das 21h como uma vilã que não para de crescer, a atriz assina sua primeira direção em uma obra que concebeu e que aos poucos vê ser tirada de suas mãos enquanto tenta conciliar os dois trabalhos, as frustrações e desafios da carreira e a vida familiar.

Gasparani por sua vez também consegue grandes momentos como o ator frustrado que batalha para manter a companhia de pé, mas não enxerga seu ego inflado minando sua carreira. Cada uma das personagens encontra eco em alguns dos nomes centrais de A Tragédia de Júlio César sem jamais resvalar em obviedades.

Cesar Augusto em Julius Caesar - Vidas Paralelas
Cesar Augusto em Julius Caesar – Vidas Paralelas

A delicadeza é o ponto central de Julius Caesar – Vidas Paralelas, cuja dramaturgia e a direção constroem um caminho inventivo, porém simples, para que o público mergulhe em duas histórias distintas, mas muito bem costuradas ao longo de (imperceptíveis) duas horas.

Delicadeza que, verdade seja dita, fica restrita à dramaturgia, à direção e a parte do elenco. A trilha original e a direção musical assinadas por Gabriel Medina, vai na contramão, propondo bem vinda antítese e aprofundando o teor trágico da história contemporânea que, diferente da obra de Shakespeare, se resolve sem mortes literais, mas com jogo psicológico dilacerante sobre o ofício do ator e de outros profissionais que compõem a cultura das artes no Brasil.

Se o desenho de luz e os figurinos assinados por Ana Luzia De Simoni e Marcelo Olinto, respectivamente, pouco adicionam à montagem, há certo fascínio no cenário simples e efetivo de Beli Araújo, composto também pelas (excelentes) projeções de vídeo de Batman Zavareze.

Em cartaz apenas até 14 de julho, Julius Caesar – Vidas Paralelas mostra que, aos 35 anos de trajetória artística, a Companhia dos Atores mantém pulsante a veia criativa que, aliada a um descontentamento político e social, comprova que é possível se manter relevante e desafiador sem apelar por caminhos fáceis ou simplificações desnecessárias.

COTAÇÃO: * * * * (ÓTIMO)

SERVIÇO

Julius Caesar – Vidas Paralelas

Data: 21 de junho a 14 de julho (quinta a domingo)

Local: Teatro Anchieta do Sesc Consolação – São Paulo (SP)

Endereço: Rua Dr. Vila Nova, 245, Consolação, região central

Horário: 20h (qui. a sáb) e 18h (dom)

Preço dos ingressos: R$ 25 (meia) a R$ 50 (inteira)