Publicidade infantil é ilegal em todas as telas: da TV à internet, sem exceção

Publicado em 28/03/2024

Por Maria Mello

Emanuella Halfeld

e Jéssica Costa

 

Lembra-se das publicidades veiculadas na TV que influenciavam as crianças, usando estratégias como “Compre Baton!”, para estimular o consumismo? Essas práticas, hoje devidamente proibidas, podem ser legalizadas no âmbito da internet e das tecnologias da informação devido às movimentações para a votação do Projeto de Lei 2628/22. A proposta busca estabelecer uma legislação que proteja crianças e adolescentes no ambiente digital e, atualmente, está sob análise na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) do Senado Federal.

Contrariando os esforços iniciais para proteger as crianças, o relatório do senador Jorge Kajuru (PSB/GO) propõe remover a vedação de direcionamento de publicidade e de comunicação mercadológica a crianças em produtos e serviços da tecnologia da informação, estabelecida no art. 10º, originalmente. Além disso, trata de forma equivocada crianças e adolescentes da mesma forma quanto ao direcionamento de publicidade, pois, ao incluir as crianças no art. 11º, o texto as equipara aos adolescentes e concede a elas menos proteção contra a publicidade do que aquela efetivamente devida a pessoas dessa faixa etária, nos termos da legislação e da jurisprudência atuais.

Tais mudanças levantam sérias preocupações sobre uma inversão de valores – a priorização dos lucros de empresas em detrimento da segurança das crianças. Para além disso, há a falta de debates públicos em torno do projeto de lei e das suas alterações, que podem implicar retrocesso no tocante a uma questão tão cara para a sociedade brasileira, conforme reconhecido pelo art. 227 da Constituição Federal e pelo Código de Defesa do Consumidor e reforçado pelo Comentário Geral nº 25 das Nações Unidas, que trata sobre os direitos das crianças no ambiente digital e é vigente no Brasil, signatário da Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.

Para entender melhor o contexto em questão, é importante observar algumas das escolhas feitas durante a formulação do Projeto de Lei 2628/22. Ao referir-se a um “produto ou serviço de tecnologia da informação”, o projeto apresenta um escopo bastante amplo. Abrange redes sociais, mecanismos de busca, jogos eletrônicos, plataformas educacionais e serviços de troca de mensagens, assim como outros produtos e serviços tecnológicos inovadores, desde que estejam conectados à internet ou a uma rede de comunicação. E, nesse sentido, incluem-se produtos populares de inteligência artificial, como o ChatGPT, brinquedos inteligentes, assistentes virtuais conectados à rede, como Alexa, Smart TVs e outros dispositivos conectados ao mundo virtual, que fazem parte do cotidiano não só dos adultos.

Dados recentes da pesquisa TIC Kids Online Brasil apontam a forte influência do ambiente digital na vida dos jovens brasileiros e revelam uma realidade impressionante. Em um cenário no qual 95% da população brasileira entre 9 e 17 anos está conectada à internet, é importante ressaltar que cerca de 24% desses indivíduos tiveram seu primeiro acesso antes mesmo de completarem 6 anos de idade, acessando produtos e serviços que, na maioria das vezes, não foram pensados para eles, como é o caso das redes sociais.

Mesmo com termos de serviço que proíbem o acesso de menores de 13 anos, as crianças mais novas continuam a marcar presença de forma significativa nessas plataformas. A mesma pesquisa revela que 71% dos perfis de crianças entre 9 e 10 anos estão no YouTube, enquanto o WhatsApp e o TikTok têm 51% e 50% de representação, respectivamente. De maneira igualmente significativa, as duas primeiras redes sociais mencionadas têm presença expressiva na faixa etária de 11 a 12 anos, com 90% e 70% de alcance, enquanto o Instagram, que é a terceira plataforma mais popular nessa faixa etária, alcança a notável taxa de 52%.

Há quase 30 anos, o Instituto Alana mostra  como a falta de capacidade para distinguir um conteúdo comercial não só prejudica o desenvolvimento das crianças, como  as induz ao erro ao provocar vontades passageiras e impulsos consumistas. E hoje, diante dos avanços tecnológicos, nos deparamos com contornos mais complexos que moldam as tentativas de empresas, sejam de tecnologia ou anunciantes, gerarem lucros a partir da exploração da vulnerabilidade dos mais novos em um ambiente digital que necessita de regulação. O grande perigo do relatório do Senador Jorge Kajuru é permitir que a inovação necessária de produtos e serviços tecnológicos no Brasil seja motivada pela exibição de publicidade a crianças, em vez de considerar o seu desenvolvimento cognitivo e psicológico, a sua educação e o seu preparo enquanto cidadãos democráticos, como dispõe o art. 71 do Estatuto da Criança e do Adolescente.

Trata-se de um cenário gravíssimo. Não são poucos os estudos que  demonstram que, antes dos 12 anos de idade, a pessoa não é capaz de compreender ou reagir criticamente à publicidade. É a partir dessa chave de compreensão que o Código de Defesa do Consumidor (CDC) proíbe a publicidade direcionada à criança. O art. 37 do CDC estabelece que é proibida a publicidade enganosa ou abusiva, inserindo a exploração da “deficiência de julgamento e experiência da criança” como hipótese de abusividade em seu §2º.

Ora, estando as crianças em especial etapa de desenvolvimento físico, psíquico e emocional, as empresas anunciantes, ao produzirem conteúdos especificamente voltados a esse público, acabam, invariavelmente, por aproveitar-se de sua inexperiência, já que as crianças não possuem plenas condições de entender o caráter persuasivo da comunicação publicitária e refletir criticamente sobre a pertinência ou não do consumo de um produto. No âmbito de produtos e serviços digitais, pode-se lucrar a partir da exposição da criança a conteúdo publicitário e, assim, criar artifícios para mantê-la engajada e online e, portanto, lucrando sobre a experiência de navegação daquela criança, caracterizando-se, assim, situação de exploração comercial de suas vulnerabilidades.

Em igual sentido, o artigo 39 do Código veda ao fornecedor prevalecer-se da fraqueza ou ignorância do consumidor, tendo em vista inclusive a sua idade, para vender-lhe seus produtos e serviços. Não há dúvidas, portanto, de que o diploma legal condena a exploração da subjetividade infantil para fins publicitários. O art. 5º do Marco Legal da Primeira Infância, por seu turno, estabelece como área de ação prioritária a proteção da criança contra a pressão consumista.

Ressalte-se, ainda, a compreensão do Superior Tribunal de Justiça (STJ), cuja jurisprudência veda campanhas publicitárias que manipulam o universo lúdico infantil. Na medida em que publicidade é uma oferta, negócio jurídico precursor da celebração de contrato de consumo, à criança não deve ser direcionada publicidade que a incita agir como se fosse plenamente capaz, sem que o seja.

A manutenção da vedação da publicidade e da comunicação mercadológica às crianças é, portanto, um ato político que dá um direcionamento aos desenvolvedores de produtos e tecnologias no Brasil: de que a tecnologia para crianças do país não pode ser construída com base na exploração comercial das infâncias, mas sim privilegiando, sempre, o seu melhor interesse e desenvolvimento integral.

(*)

Maria Mello, coordenadora do programa Criança e Consumo, do Instituto Alana

Emanuella Halfeld, analista de Relações Governamentais do Instituto Alana

Jéssica Costa, analista de comunicação do Instituto Alana

 

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