Análise

Espetáculos usam a nudez para combater preconceitos e hiperssexualização no Rio e em SP

Pasolini no Deserto da Alma e O que Meu Corpo Nu te Conta discutem a força do nu para além do sexo

Publicado em 02/03/2024

Em 2017, durante a abertura do 5º Panorama de Arte Brasileira, no MAM, em São Paulo, a performance La Bête, do coreógrafo fluminense Wagner Schwartz, causou revolta do MBL e de outros setores ligados à extrema direita quando caiu na rede um vídeo que mostra uma criança de aproximadamente quatro anos tocando o pé do artista, que se apresentava nu em uma referência à obra O Bicho, de Lygia Clark (1920-1988).

A partir de então, uma série de denúncias de pedofilia começaram a pipocar nas redes e chegou até o Ministério Público, que não só não viu crime no ato como considerou se tratar de uma “histeria coletiva” a reação de grupos extremistas por não haver qualquer conotação sexual na performance.

Entretanto, o movimento voltou a dar vazão a uma intensa perseguição de artistas e criadores que se permitem usar a nudez para explorar temas que estão além da erotização, fetichização e sexualidade de corpos.

Guardadas as devidas proporções, vem deste movimento a polêmica durante uma sessão da peça Pasolini no Deserto da Alma no último domingo, 25, quando um senhor discutiu com a esposa e deixou a sala de espetáculos do Teatro Glauce Rocha, no Centro do Rio de Janeiro, em protesto a uma cena de nu frontal protagonizada pelo ator Léo San.

“Em cenas de nudez, e intimidades entre pessoas do mesmo sexo, é normal que a plateia reaja de alguma maneira. Eu já conduzi os ensaios preparando o elenco para eventualidades”, diz Francis Mayer, diretor do espetáculo, em cartaz até domingo, 03.

Cena de Pasolini no Deserto da Alma

Narrando o encontro entre o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975) e o jovem ator Ninetto Davoli, a obra flagra os primeiros momentos de paixão de uma relação que durou nove anos, o que faz com que Mayer acredite que o problema não esteja necessariamente na cena de nu frontal, mas no fato de ela estar relacionada a um momento de afeto entre duas pessoas do mesmo sexo. 

“A história se repete: em 1989, quando produzi Querelle de Jean Genet (1910-1986), com Gerson Brenner e Rogéria (1943-2017), numa cena romântica entre os personagens, uma senhora começou a gritar na plateia dizendo que deveríamos ‘salvá-la’ (Rogéria) e indicar o caminho do Senhor”, conta.

As reações não se restringem apenas ao teatro. Na última temporada de filmes, alguns títulos receberam críticas do público por cenas de sexo ou de nudez, entre eles os indicados ao Oscar Pobres Criaturas e Oppenheimer, o que tem mostrado cada vez mais uma aversão do público jovem a estes temas. 

Ao menos é o que mostra uma pesquisa da Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA) publicada pela revista Exame. A pesquisa atesta que 47,5% dos jovens americanos que em 2023 teriam entre 15 e 28 anos, portanto a geração Z, são avessos a cenas de sexo e nudez em filmes e séries. 

É sintomático, portanto, que outra pesquisa, a IGen, comandada pela psicóloga norte-americana Jean M. Twenge tenha atestado que a geração nascida a partir de 1995 faça menos sexo do que gerações anteriores.

De acordo com Twenge, a pré-disposição em negar o sexo e os corpos nus pode afastar a geração Z de experiências relacionadas ao corpo, mas em nada ligadas ao erótico ou ao sexo, como filmes, exposições, performances e mesmo peças de teatro.

Em cartaz desde sexta-feira, 29, no palco do Teatro Paulo Eiró, em Santo Amaro, zona sul de São Paulo, o espetáculo O que Meu Corpo Nu te Conta adota exatamente o caminho apontado por Twenge de não abraçar qualquer ideia de erotismo, fetichização ou sexualidade dos corpos de seu elenco formado por 18 atores nus. 

A montagem tem como foco o processo de autoficção, em que cada ator, em um jogo cênico montado com a adesão da plateia, apresenta um solo curto de quatro minutos sobre memórias que podem ser suas ou recuperadas de algum colega de elenco durante o processo.

O que meu Corpo nu te Conta

Sob a direção de Marcelo Varzea, a peça enfrenta desafios que vão desde a reação da plateia até a divulgação. “No Instagram é impossível patrocinar um post sobre o espetáculo, ele derruba, nós recebemos denúncias. As pessoas acham que tem a ver com erotismo e não é nada disso. Uma parcela do público vai por uma questão fetichista, curiosa, voyeur e dura muito pouco. Alguns se frustram e outros entendem a beleza daquilo”, diz.

“Existe sim uma questão dos homens que objetificam aqueles corpos excessivamente. Alguns artistas já se sentiram constrangidos com os olhares muito intrusivos. Isso com homens e com mulheres, porque recebemos homens heterossexuais que hipersexualizam o corpo feminino, mas homens homossexuais e bissexuais que têm toda a questão do falocentrismo e também objetificam os corpos masculinos. É uma questão tóxica, mas que vai sumindo ao longo do espetáculo.” 

Para o diretor, a questão está principalmente na intenção da montagem. “O erotismo está na cabeça de cada um. Nós não temos a intenção de fazer nada sexualizado, nada fetichista e aos poucos as pessoas entendem isso. Quando você vai ao médico e precisa tirar a roupa, não há sexo ali. Há cuidado, há medicina, há cura. Aqui é parecido.”

Pasolini no Deserto da Alma, cumpre temporada no Teatro Glauce Rocha, no Centro do Rio de Janeiro, até amanhã, 03, com sessões às 19h (hoje) e às 18h (amanhã). Os ingressos custam de R$ 30 (meia) a R$ 60 (inteira).


O Que meu Corpo Nu te Conta fica em cartaz até o dia 10, domingo, no Teatro Paulo Eiró, em Santo Amaro, região sul de São Paulo, com sessões às 21h (quintas, sextas e sábados), às 18h (sábados) e às 19h (domingos). Os ingressos custam de R$ 15 (meia) a R$ 30 (inteira).

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