Crítica

Envolta em molde contemporâneo, A Última Entrevista de Marília Gabriela é bom drama familiar

Espetáculo apresenta embate entre mãe e filho com diálogos que fazem bem ao enganar a plateia

Publicado em 20/06/2024

Inegavelmente há certo ar de modernidade em A Última Entrevista de Marília Gabriela, espetáculo que marca o retorno da jornalista e apresentadora Marília Gabriela aos palcos seis anos após sua última investida, Casa de Bonecas 2, do nova iorquino Lucas Harndt acerca de uma possível continuação ao clássico homônimo de Henrik Ibsen (1828-1906).

Se buscava emular uma Nora libertária naquela obra, nesta montagem a jornalista se apresenta despida de qualquer personagem senão o de sua própria figura pública, que enfrenta a prova de fogo ao se ver desconstruída pelas impressões de seu filho, o ator, cenógrafo e figurinista Theodoro Cochrane. “É teatro contemporâneo”, repetem em diálogos lidos em cena sem qualquer inibição.

Todos os signos apresentados pela direção de Bruno Guida e pela dramaturgia de Michelle Ferreira levam a crer que, de fato, trata-se de uma experiência envolta na ideia de um teatro contemporâneo pronto a romper com os dogmas estruturais do chamado teatro convencional. 

O cenário multimídia assinado por Guida, o desenho de luz estático de César Pivetti, o relacionamento (até) surpreendente com a plateia, e o texto que parece fugir à uma história  comum aprofundam a impressão.

Pistas falsas. À medida que A Última Entrevista de Marília Gabriela prossegue, o texto de Michelle Ferreira se comprova como mais um embate entre um filho e sua figura materna, clássico drama familiar. E, no caso, um ótimo drama familiar que leva em conta alguns dos principais temas do gênero como as lembranças da infância, a culpa, a suposta falta de remorso em verdades crueis que são ditas em momentos de extrema tensão e embate.

O texto, inclusive, se deixa levar pelas mesmas armadilhas de clássicos dramas familiares ao propor uma manutenção da relação entre as personagens que resvala no melodrama, mas é bem driblada pela direção segura e inventiva de Bruno Guida e pelo desempenho do elenco, que se mostra (presumivelmente) afinado em cena.

A Última Entrevista de Marília Gabriela talvez seja o melhor momento de Marília Gabriela em cena. Ainda que tenha tido bons desempenhos em espetáculos como  o supracitado Casa de Bonecas 2, Constelações ou mesmo no longínquo Senhora MacBeth, sempre pairou na figura da apresentadora certo desconforto com o palco – talvez reflexo  das direções sempre cambaleantes das últimas montagens que protagonizou. Não é o que acontece aqui.

A montagem não só dá a apresentadora a segurança de se sentir à vontade, como também resolve de forma muito mais efetiva a ideia de trabalhar em cena sua figura pública enquanto uma espécie de objeto de estudo midiático quase 25 anos antes em Esperando Beckett, obra concebida e dirigida por Gerald Thomas para a jornalista. A direção de Guida leva a artista a expor com fluidez suas fragilidades frente à imagem quase mítica que o público se acostumou a relacionar a ela.

E são essas fragilidades que fazem com que a montagem cresça, principalmente quando se dá o ápice do conflito entre mãe e filho, que fica cada vez mais fluente – mérito do ótimo desempenho de Cochrane – quando atinge temas como a frustração, a mágoa suprimida por décadas e o sentimento de fracasso parental, tudo apimentado com toques pseudo biográficos do relacionamento entre a apresentadora e seu filho.

Dupla pop do teatro contemporâneo, Bruno Guida e Michelle Ferreira dão passo adiante no ponto de maturação que sua parceria atingiu em 2021, com a montagem de Bárbara, monólogo estrelado por Marisa Orth com base em A Saideira, livro autobiográfico da jornalista Bárbara Gancia no qual narrou sua luta contra o alcoolismo. 

A produção foi sucesso de público e de crítica colocando a dupla em alto patamar que recebe manutenção fluente de A Última Entrevista de Marília Gabriela em cartaz no palco do Teatro Unimed, em São Paulo até 28 de jullho e que comprova que para fazer com que o teatro contemporâneo ocorra, não é preciso extinguir antigos dogmas, apenas saber como moldá-los.

COTAÇÃO: * * * * (Ótimo)

SERVIÇO

A Última Entrevista de Marília Gabriela

Data: 03 de maio a 28 de julho (sexta a domingo)

Horário: 20h (sextas e sábados); 18h (domingos); 17h (sábados – sessões extras)

Local: Teatro Unimed, São Paulo – SP

Endereço: Ed. Santos Augusta, Al. Santos, 2159 – Jardins, região centrosul

Preço do ingresso: R$ 60 (meia) a R$ 180 (inteira)