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Rafaela Ferreira se despede de Poliana Moça, lança livro sobre jovem gorda e critica “fat suit” em A Baleia

À coluna, atriz analisa final de novela do SBT e fala do romance Eu Só Cabia nas Palavras

Publicado em 22/03/2023

Após quase cinco anos, Rafaela Ferreira, enfim, se despede de Nanci, seu papel mais duradouro na TV, que a tornou querida por crianças e adolescentes nas novelas As Aventuras de Poliana e Poliana Moça, do SBT. Ativista contra a gordofobia, a atriz parte para um novo desafio: ser escritora. Ela anunciou em suas redes sociais o pré-lançamento do romance Eu Só Cabia nas Palavras (editora Harper Collins Brasil), protagonizado por uma adolescente gorda com muitos tons autobiográficos.

“A princípio, eu iria fazer um livro autobiográfico mesmo, inclusive cheguei a escrevê-lo. Depois, cheguei à conclusão de que sou jovem, talvez não fosse a melhor opção nesse momento, e o romance gera mais identificação. Muita coisa saiu, mas permanecem várias vivências. Mantive, por exemplo, o lugar onde eu vivia quando era adolescente, o bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro. Um pouco dos bullyings que ela sofre, muitas das frases que ela ouve, eu ouvi. Também usei algumas histórias que ouço tanto de amigas quanto de pessoas que me seguem e enviam relatos, para contextualizar e gerar mais identificação em quem lê, porque esse é o propósito, que as pessoas se enxerguem dentro da Giovana, mesmo não sendo pessoas gordas. Não podemos esperar que só as pessoas gordas fiquem nessa luta. Precisamos que todo mundo lute contra a gordofobia”, explica Rafaela Ferreira à coluna.

A atriz de 34 anos também comenta o preconceito contra pessoas gordas no meio artístico e cita o filme A Baleia, que transformou o protagonista e vencedor do Oscar, Brendan Fraser, em um obeso, prática chamada de “fat suit” (vestir-se de gordo, em tradução livre).

“Quer falar sobre gordofobia? Por que não botar um ator gordo? Aí surgiu a polêmica [amplificada pelo ator Alexandre Nero] de que um ator gordo não teria capacidade, porque ‘ah, ele tem obesidade grau 3’. Usaram até o nome que não se usa mais, ‘obesidade mórbida’ é riscado, e segundo o movimento gordo nem gostamos do termo obesidade. Usamos o termo pessoa gorda, mas pelo nome que os médicos usam eu sou uma pessoa de obesidade grau 3 e conheço inúmeras pessoas extremamente ativas e que estão vivendo suas vidas, trabalham como jornalistas, atrizes, advogadas. Isso não impede ninguém de viver sua vida. A situação de A Baleia é muito extrema, mas poderiam, sim, ter convidado um ator gordo para fazer esse personagem. Acho que poderia contribuir bastante, porque a pessoa que está vivendo a situação sabe como é, e não ficaria uma representação um pouco desumana”, critica.

Em entrevista exclusiva, Rafaela Ferreira analisa o final de Poliana Moça, antecipa novos projetos e conta como empodera mulheres gordas a se orgulharem de seus corpos. Confira a íntegra abaixo:

Rafaela Ferreira em Poliana Moça
Rafaela Ferreira em Poliana Moça

PAULO PACHECO: Rafaela, você fala que Eu Só Cabia nas Palavras é um livro que você gostaria de ter lido quando era adolescente. E você trabalha atualmente com o público jovem, tem muitos fãs adolescentes tanto na televisão quanto na internet. Quando teve a ideia de escrever, você pensou principalmente nesse público que te acompanha?

RAFAELA FERREIRA: Com certeza. Primeiramente, porque esse público me acompanha há bastante tempo. Comecei em Malhação, em 2009. Mais tarde, fiz Rebelde. Esses adolescentes estão adultos hoje, mas continuam acompanhando. Acho também que, para mim, a adolescência foi o período mais difícil em relação ao corpo. No início da vida adulta, com a faculdade de teatro e as oportunidades na TV, consegui ressignificar muita coisa, mas na adolescência era muito difícil, porque o ambiente escolar tem toda aquela cobrança, as piadas inconvenientes, o bullying, todo esse cenário. Por isso digo que queria ter lido um livro como esse, porque foi escrito justamente para inspirar ou conseguir fazer com que as pessoas entendam um pouco melhor, ou por empatia ou por identificação mesmo, como é ser um corpo gordo.

Apesar disso, o livro não se propõe a reviver sofrimento. Para quem já sofreu bullying ou preconceito, é difícil ficar vendo de novo. Pelo contrário, é uma forma de apresentar que isso acontece, porque infelizmente a nossa sociedade continua nesse mesmo lugar de ainda termos dificuldade de acesso, muitas crianças gordas estão sentadas na carteira da escola espremendo a perna delas, não conseguem ir ao banheiro às vezes de uma forma confortável porque é estreito, enfim. Existe gordofobia na adolescência, no ambiente escolar, até hoje. Também não daria para fechar os olhos e fingir que não está acontecendo, mas o livro se propõe a uma mensagem positiva, de incentivar as pessoas a serem quem são, a correrem atrás dos sonhos delas.

PP: Com esse propósito você criou essa personagem, a Giovana. O que tem de Rafaela na personagem? O livro nasceu primeiramente das suas experiências?

RF: Olha, sim. A princípio, eu iria fazer um livro autobiográfico mesmo, inclusive cheguei a escrevê-lo. Depois, cheguei à conclusão de que sou jovem, talvez uma autobiografia não fosse a melhor coisa nesse momento da minha vida, ainda tem muita coisa para acontecer, e também porque acho que a ficção, gera mais identificação ainda. Foi por isso que optamos pelo romance. Muita coisa saiu, tirei muita coisa autobiográfica, mas, claro, permanecem várias vivências, várias das histórias que acontecem com ela e comigo. Eu mantive, por exemplo, o lugar onde eu vivia quando era adolescente, o bairro de Campo Grande, no Rio de Janeiro. A história se passa nesse lugar. Um pouco dos bullyings que ela sofre, muitas das frases que ela ouve, eu ouvi.

Mas muita coisa também é ficção, a gente se permite deixar mais bonito, mais encantado, ou às vezes mais feio quando é em relação ao preconceito. Emprestei, sim, algumas histórias e também as que ouço tanto de amigas quanto de pessoas que me seguem e enviam relatos. Acabei usando-as para contextualizar e gerar mais identificação em quem lê, porque esse é o propósito, que as pessoas se enxerguem dentro da Giovana, mesmo não sendo pessoas gordas. Porque é como qualquer luta. A gente não pode esperar que só as pessoas gordas fiquem nessa luta. Precisamos que todo mundo lute contra a gordofobia.

Capa do livro Eu Só Cabia nas Palavras, de Rafaela Ferreira
Capa do livro Eu Só Cabia nas Palavras, de Rafaela Ferreira

PP: Principalmente porque a gordofobia e os preconceitos em geral vêm do outro. Você, como atriz, já ouviu no trabalho se era capaz de fazer um papel ou foi enxergada como se tivesse um problema de saúde? Você chegou a um momento da carreira em que diz não a personagens estereotipados ou que te colocam em uma posição desconfortável?

RF: Depende muito. Quando te apresentam uma personagem, dificilmente mostram o lado estereotipado dela, a não ser que seja muito estereotipado, aí sim eu teria opção de dizer não. Mas, sendo muito sincera, você recebe uma sinopse pequena da personagem e só se depara com essas cenas estereotipadas no decorrer do trabalho. É uma coisa que você tem que saber lidar. Alguns diretores e diretoras são abertos, e quando você se depara com algo que realmente não curtiu ou sentiu que vai ser pior, um desserviço para alguém, às vezes você consegue conversar e fazer uma pequena mudança na cena que já melhora alguma coisa, mas às vezes as pessoas não estão abertas a esse tipo de mudança. Já tive esses dois tipos de experiência.

Geralmente sou convidada a fazer personagens que são gordas. O meio audiovisual funciona muito por perfil. A gente, na verdade, não tem a oportunidade de fazer testes para outras personagens. Só vão me chamar se estiver descrito: ‘Fulana, 30 anos, gorda’. Aí vão me chamar. Se for só: ‘Fulana, advogada, 30 anos’, nem sou cogitada para esse teste. Esta é a maior dificuldade. Não acontece só comigo, não é um ‘privilégio’ só meu. Acontece também com pessoas negras ou com ascendência asiática, acontece com pessoas trans. Acontece com muita gente por ser muito setorizado.

Você falou sobre as pessoas que julgam a incapacidade da pessoa gorda. Vimos isso acontecer agora com o filme A Baleia. Não assisti ao filme, mas pelo que já ouvi das pessoas eu não tenho vontade de reviver esse tanto de violência, não tenho mesmo vontade de pegar uma coisa que é uma ferida aberta. Já assistimos a outros filmes deste diretor [Darren Aronofsky] e sabemos que ele curte essa coisa de extremos e situações limítrofes em que a pessoa vai se afundando cada vez mais nas questões que elas têm. Não sei se esse assunto eu gostaria de ver, por isso ainda não vi. Mas não falem de nós sem nós. Quer falar sobre gordofobia? Por que não botar um ator gordo?

Aí surgiu essa polêmica de que um ator gordo não teria capacidade, porque ‘ah, ele tem obesidade grau 3’. Usaram até o nome que não se usa mais, ‘obesidade mórbida’ é riscado, não existe mais, diz obesidade grau 3, e segundo o movimento gordo a gente nem gosta do termo obesidade. A gente usa o termo pessoa gorda. Mas, usando o nome que os médicos usam eu sou uma pessoa de obesidade grau 3 e conheço inúmeras pessoas extremamente ativas e que estão vivendo suas vidas, trabalham como jornalistas, atrizes, advogadas. Isso não impede ninguém de viver sua vida. A situação de A Baleia é muito extrema. Agora, poderia, sim, ter convidado um ator gordo para fazer esse personagem. Acho que isso poderia contribuir bastante, porque a pessoa que está vivendo a situação sabe como é, e não ficaria uma representação um pouco desumana.

Brendan Fraser no filme A Baleia
Brendan Fraser no filme A Baleia

PP: Existe até um termo, ‘fat suit’, que significa um magro se vestir de gordo.

RF: Como era normalizado o blackface [brancos escurecendo a pele para interpretar negros] até um tempo atrás. O fat suit acontece muito, ocorreu também em Matilda [musical da Netflix]. As pessoas têm medo, ‘ah, mas vai colocar uma pessoa gorda nessa situação’. Poxa, você está falando da situação dela, os preconceitos e as violências que essa pessoa vive. Como pode ser estranho ou ruim uma pessoa gorda estar nessa situação se você está falando justamente da história e das coisas pelas quais ela passa todo dia e que ela tem muita consciência e muita memória corporal do que é viver essas situações?

PP: Sobre A Baleia, o ator Alexandre Nero chegou a equiparar gordos a pacientes com câncer. Uma comparação extrema e, no mínimo, desagradável. Ele foi corretamente corrigido e repudiado por muitas pessoas, gordas e magras. Se você viu, como recebeu esse tipo de comentário que, vindo de uma pessoa pública, valida outros preconceitos?

RF: Não acompanhei a polêmica, mas aquilo que eu estava te falando. A gente tem que se blindar também. Para quem já vive com essa realidade, às vezes é muito difícil conseguir dar nossa opinião sobre tudo porque isso é se reexpor a uma violência. Muitas vezes eu prefiro simplesmente: ‘Ah, galera, beleza, isso está acontecendo, mas não é o momento para mim, quem sabe mais para a frente eu fale sobre isso’. A única coisa que acompanhei foi o caso de ter falado ‘pessoas com obesidade mórbida’, que isso não existe mais. Esse é o único ponto que eu faço questão de bater. Beleza, a gente pode dar a nossa opinião, mas é melhor também dar uma estudadinha antes, dar uma olhada para se atualizar, para poder fazer uma crítica que realmente tenha base.

Eu não julgo o que aconteceu com ele. Dentro de outros assuntos, eu também correria o risco de falar besteira, sabe? Acho que essa política de só ‘cancelar’ as pessoas não vai nos levar a nada, vai ser mais difícil para ele conseguir aprender alguma coisa disso e também para as pessoas que estão lendo a opinião dele. Sou a favor da educação. Que a gente aprenda os termos corretos, aprenda a se colocar. O que eu espero é que essa colocação infeliz lhe sirva como uma forma de aprender, evoluir e não cometer mais o mesmo erro. Quem sabe, passar a ter uma empatia maior pelas pessoas gordas e, principalmente, pelos atores gordos. Reconhecer o valor. Podemos hoje fazer uma lista tão grande de artistas que estão arrasando.

Alexandre Nero apagou tweet gordofóbico sobre o filme A Baleia
Alexandre Nero apagou tweet gordofóbico sobre o filme A Baleia

PP: Como Poliana Moça tem ajudado crianças e famílias ao verem a Nanci, sua personagem, na novela? Que tipo de mensagens você recebe deste público?

RF: É maravilhoso! No último fim de semana, fui ao evento Pop Plus, da Flávia Durante, que faz a gente se sentir acolhida. Sabe a sensação que qualquer pessoa tem ao entrar em um shopping e comprar em qualquer loja? É o que a gente sente no Pop Plus! Porque a verdade é que, hoje, se eu vou a um shopping, muito talvez exista uma loja que me vista. As lojas de departamento talvez tenha uma pequena arara onde eu encontre algumas peças. Entrar no Pop Plus, onde qualquer estande vai ter o seu tamanho, é uma coisa linda! Fui fazer um debate sobre estilo e rede social. Antes de começar, veio uma família com uma adolescente gorda, muito estilosa, e ela veio falar comigo: ‘Eu me inspiro muito em você, eu me acho parecida com você, eu também quero trabalhar como atriz, também quero bombar nas redes sociais, você é uma inspiração’. Isso a gente recebe muito por mensagem, mas quando é pessoalmente, caramba, tem outra pegada, coisa de olhar no olho, de ver a inspiração. Isso, por exemplo, é algo que nunca tive. Nunca pude dizer a uma atriz que me inspirava nela. Pelo contrário, nessa idade eu tinha medo de bancar ser atriz porque achava que talvez não desse. Comecei com 13 anos a fazer teatro e ficava assim: ‘Será que eu posso mesmo?’.

Por sorte, minha mãe sempre me incentivou muito, minha família sempre esteve ali do lado. Este livro, por exemplo, é uma grande realização e minha mãe sempre me incentivou. Eu escrevia e jogava fora. Ela catava e guardava. Esses dias ela até me deu uma caixa com um monte de escritos que eu escrevi nessa época, na idade da Giovana, é muito surpreendente como era difícil para a gente conseguir criar autoestima, mas não só isso, uma segurança de que existe um lugar para você. Por isso digo que gostaria de ter lido esse livro, porque sinto que isso empodera mesmo, ‘se ela pode, eu também posso’. Recebo muitas fotos, ontem mesmo recebi uma em que a pessoa bota a foto dela com a minha do lado: ‘Todo mundo da minha família fala que eu me pareço com a Nanci’ (risos). Fico muito feliz que isso aconteça! Também ouço muito: ‘Ah, não tinha coragem de usar tal roupa, biquíni, cropped’, todos esses estigmas de que ‘ah, gordo não veste isso’. ‘Vi você usar, tomei coragem e usei uma vez’. É muito libertador, porque é isso que a gente precisa, que a gente normalize isso.

PP: Esta é uma conquista sua e uma pressão para quem ainda tem a mente fechada abri-la.

RF: Com certeza. Vejo que os adolescentes dessa geração têm uma liberdade muito grande em tudo: em relação à orientação sexual, em relação aos próprios corpos, existe uma liberdade muito maior. O que a gente ainda enfrenta é a família. Por exemplo, pessoas da minha idade com filhos começando uma pré-adolescência vêm daquela educação das capas de revista. O mais difícil é a gente respeitar essa liberdade. Mas eu acredito muito que a gente está evoluindo e que a gente vai chegar em um momento mais livre, sem precisar colocar rótulos. Mas ainda estamos no momento em que é importante nos afirmarmos.

PP: Acredito que você escreveu um final positivo para a Giovana. E em Poliana Moça, o final da Nanci foi o que você imaginava?

RF: O final de Eu Só Cabia nas Palavras é feliz sim! Diria que esse livro é sobre amor, amor-próprio e também o amor romântico, relacional. É um final bonito. Em Poliana Moça, vou confessar a você que esperava um final diferente para a Nanci, pensando muito na primeira temporada, em que ela terminou dando uma reviravolta na vida, ganhou o Bake Off, abriu o próprio negócio, estava toda toda. Nesse final que vai acontecer, ela termina bem, mas eu imaginava que fossem acontecer outras coisas. Para mim, foi surpreendente e acredito que o público também vai se surpreender! (risos)

PP: Depois de quase cinco anos vivendo a mesma personagem, como você se despede da Nanci?

RF: A Nanci é um presente muito grande para mim. Foram cinco anos maravilhosos, de muito amadurecimento e muito aprendizado. Sou extremamente grata a essa novela e a essa personagem. Quando vejo que está acabando, dá um misto de sentimentos, porque também tenho felicidade de entregar algo que te acompanhou durante tanto tempo e ver que foi tudo bem, tudo direitinho. Dá felicidade sim de concluir e se abrir para o que vem. Nós, enquanto atores, temos que nos acostumar a isso, porque as obras às vezes duram oito meses e temos que dizer ‘tchau’. É uma sensação legal e, ao mesmo tempo, imagino que vou continuar sendo chamada de Nanci durante muito tempo, até por ver o perfil das novelas do SBT, com um público muito fiel, que daqui dez anos tenho certeza de que vai perguntar: ‘Onde está a Nanci?’ (risos), porque você mexe com o imaginário de crianças e adolescentes. Muitas crianças vão me dizer: ‘Você fez parte da minha infância!’.

PP: Quando vamos te ver novamente na TV?

RF: Fiz testes no início do ano, mas ainda não rolou nada concreto como atriz. Apresento um podcast no SBT chamado Azamigas, ao lado da Bryanna Nasck. Estou produzindo uma peça e quero montar um espetáculo com o texto do livro, logo depois do lançamento. Vou fazer a noite de autógrafos do livro no dia 26 de abril, às 19h, na Livraria da Vila da Alameda Lorena, em São Paulo. Estou aberta a novos personagens, vai que alguém lê a matéria e se interessa em me convidar (risos).

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