Memória

Há 30 anos, Lulu Santos viveu dias de Anitta e foi “cancelado” por criticar apoio sertanejo ao governo

Protesto político no Domingão do Faustão foi tirado de contexto e virou declaração de ódio a gênero musical

Publicado em 13/09/2022

Ferrenhos defensores de Jair Bolsonaro, artistas sertanejos se uniram contra Anitta assim que ela passou a confrontar o presidente e atrapalhar sua campanha à reeleição, criticando a tatuagem íntima da cantora como forma de menosprezar sua opinião política. Há exatos 30 anos, a “Anitta” da vez era Lulu Santos. Durante anos, ele ficou “cancelado” por ter exposto sua indignação, ao vivo na Globo, com o apoio de sertanejos a Fernando Collor.

Em 1992, o Domingão do Faustão se transformou em palanque. Em meio às denúncias de corrupção envolvendo o governo, Fausto Silva perguntava a seus convidados se Collor deveria cair. Conseguiu arrancar de Xuxa Meneghel, ainda “rainha dos baixinhos”, o apoio dela ao impeachment. Em 13 de setembro de 1992, Lulu Santos participou do programa dominical e também foi questionado pelo apresentador sobre política.

“E afinal, Lulu, você acha que o presidente deve ficar ou deve sair?”, indagou Faustão. Contexto: o programa foi ao ar após os líderes da ABI (Associação Brasileira de Imprensa) e da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) terem assinado o pedido de impeachment, votado em 29 de setembro. A saída do chefe do Executivo do poder era iminente. O cantor expôs sua indignação com a eleição de Collor e o desespero com sua medida mais impopular, o confisco da poupança. Depois, espinafrou contra o sertanejo em um protesto até hoje tirado fora de contexto.

“Os artistas da minha geração, como Lobão, Paralamas [do Sucesso], Legião [Urbana], as pessoas do rock nacional e os artistas de uma forma geral, os cineastas, diretores de teatro, Chico [Buarque], Caetano [Veloso], [Gilberto] Gil, todos não deram apoio à candidatura desse presidente Quem deu apoio a essa candidatura eu não vou falar nomes, mas são as pessoas filiadas ao que se chama de música sertaneja, que eu chamo de música ‘breganeja’. Eu detes… eu tenho pavor desse tipo de música, embora em ache que haja um espaço para tudo que for desejado, acima de tudo, pelo público”, criticou.

A uma plateia eufórica, mas incrédula com a opinião, Lulu Santos continuou: “Houve quem desejasse Fernando Collor e houve quem desejasse essa música sertaneja. Eu acho que a música sertaneja foi a trilha sonora dessa malfadada administração. Eu gostaria que uma fosse embora junto com a outra. Muito obrigado”.

A fala foi repudiada imediatamente e, três meses depois, no mesmo Domingão, Lulu Santos pediu desculpas: “Eu reconheci num texto de jornal que houve um pequeno deslize ético da minha parte em ter me colocado publicamente em relação à estética deles. Isso é outro problema. Era só uma questão ideológica. Mas de outra forma, eles são músicos brasileiros, eles representam o desejo do povo brasileiro”.

Embora Lulu tivesse reconhecido o erro quando ofendeu um gênero musical para criticar o apoio de seus representantes ao presidente, o artista continuou sendo alvo de ataques e até mentiras. Por exemplo, foi atribuída a ele a frase “Espingarda de dois canos serve para matar dupla sertaneja”. Lulu, entretanto, nunca fez tal declaração ameaçadora.

Posteriormente, a fala de Lulu Santos foi tirada de contexto. Durante anos, o cantor ganhou a imagem de “inimigo” do sertanejo. Seu desabafo político perdeu força e se reduziu ao ódio a um gênero musical que ele jamais odiou. Sua raiva era pelos artistas que apoiaram Collor, que confiscou a poupança, teve crimes investigados e foi deposto.

Esta coluna, três décadas depois, restabelece a verdade. Por que, afinal, Lulu desejou o fim do sertanejo no palco do Domingão do Faustão? A resposta está em uma das últimas manifestações de apoio ao presidente, um mês antes do protesto ao vivo na Globo.

Brasília, 8 de agosto de 1992. No auge da CPI que apurava supostos crimes do governo, uma caravana de sertanejos visita o presidente Fernando Collor e lhe entrega um bolo de aniversário no formato da bandeira do Brasil. A cena constrangedora foi registrada pelo SBT e exibida no Sabadão Sertanejo (apresentado por Gugu Liberato, que também esteve na puxação de saco). Assista na íntegra aqui.

Zezé Di Camargo, Leandro & Leonardo, Chitãozinho & Xororó, As Galvão (Irmãs Galvão), Roberta Miranda, Gian & Giovani, João Paulo & Daniel e Dalvan (um dos únicos sertanejos a criticar a ditadura militar), entre outros, participaram do último grande ato a favor de Collor. Na mesma semana, o presidente convocou a população a vestir verde e amarelo e protestar contra a esquerda e a CPI. A maioria do povo não caiu na falácia patriota, vestiu preto e pediu sua renúncia.

Pouco se fala da atuação destes artistas na manutenção do apoio popular a Collor. O prestígio do presidente, mesmo com a força sertaneja ao seu lado, foi se deteriorando com as medidas econômicas fracassadas e as denúncias de corrupção. Atualmente, a maioria dos cantores e das cantoras passou longe de qualquer “cancelamento”. Daniel, inclusive, dividiu com Lulu Santos o júri do The Voice Brasil, na Globo, e gravou Apenas Mais Uma de Amor, interpretada pelo cantor no mesmo dia de seu desabafo no Domingão.

Já Lulu Santos virou “o intolerante” por um protesto semelhante ao de Anitta contra o governo. Ela, ao contrário do cantor, nem precisou citar sertanejos para enfurecê-los (até uma “CPI do Sertanejo” foi pedida nas redes sociais para investigar contratos milionários de prefeituras bolsonaristas com artistas do gênero). Bastou criticar Jair Bolsonaro. Ele não sofreu impeachment. Faltam 19 dias para a eleição.

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