Opinião

Análise: Craque Neto se perde no personagem ao defender Cuca e ameaça o próprio legado na TV

Treinador contratado pelo Corinthians foi condenado por participação em estupro de vulnerável, em 1987

Publicado em 24/04/2023

Neto é um dos grandes personagens da TV brasileira. Neste século, descobriu um novo talento além das cobranças de falta que o tornaram ídolo no Corinthians: o dom da comunicação. Ser uma voz influente, contudo, traz ônus e bônus. Por isso, chegou a hora de ponderar uma das principais características do apresentador e craque: a incoerência. No caso, a defesa de Cuca, novo treinador do clube paulista, condenado pela Justiça suíça por um estupro coletivo contra uma criança, em 1987.

Como titular de Os Donos da Bola, Neto transformou a incoerência em elogio, um traço de sua personalidade. Ele se confunde, entra em contradição, comete deslizes e cria saias-justas ao vivo. Sem dúvida, é uma das principais razões pelas quais o ex-jogador se diferencia dos demais comunicadores certinhos da TV.

Entretanto, Neto tem abusado de sua maior virtude frente às câmeras. Como um herói deslumbrado com seu superpoder que chega a usar contra si próprio, o ex-camisa 10 exagera no discurso incoerente e se perde no personagem que lhe rende engajamento e dinheiro.

(Frise-se: “personagem” não significa que ele finge ser alguém dentro e outra fora da TV. Personagem, aqui, não está relacionado a ficção).

O apresentador mostrou o primeiro sinal de desgaste quando defendeu Roger Guedes, atacante do Corinthians, que erroneamente chamou cabelo crespo de “ruim”, uma ofensa racista. “Todo cabelo é ruim”, justificou Neto, que diz apoiar a causa antirracista.

Na última quinta-feira (20), minutos antes de Cuca ser anunciado como técnico, Neto aconselhou o presidente corintiano, Duilio Monteiro Alves, a “esquecer os lacradores”. Quem seriam? Pessoas públicas e anônimas contrárias à contratação de Cuca em razão do estupro pelo qual foi condenado.

A manifestação contra o novo treinador foi firme e intensa, envolvendo torcedores, jornalistas e até o elenco feminino do Corinthians. Enfim, qualquer um que se opõe a um delito desta gravidade. Neto, porém, agiu de maneira contrária ao mesmo Neto que detona diariamente Robinho, também condenado por estupro, e Daniel Alves, preso acusado do mesmo crime.

Nesta segunda-feira (24), em Os Donos da Bola, Neto optou por uma estratégia torta para proteger Cuca: descredibilizar quem o critica. Primeiramente, desdenhou do protesto do time feminino do Corinthians por ter ocorrido nas redes sociais e sugeriu que elas, se estão contra o clube, não entrassem em campo.

Em seguida, tentou caçar hipocrisia na Globo, perguntando onde as comentaristas estavam quando Cuca foi contratado pela emissora para a Copa do Mundo, em 2018. Renata Mendonça, no Redação SporTV, respondeu antes mesmo da indagação do apresentador da Band. Vale a pena assistir ao vídeo completo, mas em resumo: elas não criticaram porque nem na Globo trabalhavam. E mais: o escândalo sexual foi silenciado durante décadas pelos homens que comandavam as redações de jornalismo.

Cuca teve o benefício do esquecimento, mas não o de anistia. Nos últimos quatro anos, quando mulheres brasileiras se uniram para sobreviver a um governo de extrema-direita, a causa feminista ganhou voz em todos os setores da sociedade. Na mídia esportiva, narradoras, comentaristas e repórteres ocuparam espaços historicamente machistas, controlados por homens que se apoiam principalmente quando cometem atrocidades (o que ainda ocorre com frequência, vide profissionais de TV que querem ignorar a condenação do amigo).

Neto, não dá para você ser antirracista e, ao mesmo tempo, falar “cabelo ruim”. Não dá para você chamar Robinho e Daniel Alves de estupradores e, ao mesmo tempo, isentar Cuca. O apresentador já anunciou que se aposentará da TV em 2026 para concorrer à Presidência do Corinthians. Só depende dele decidir se seu legado na comunicação será positivo ou “cancelado” por defender o indefensável.

Siga o colunista no Twitter e no Instagram.

As informações e opiniões expressas nesta crítica são de total responsabilidade de seu autor e podem ou não refletir a opinião deste veículo.

© 2024 Observatório da TV | Powered by Grupo Observatório
Site parceiro UOL
Publicidade