Crítica

Tiago Barbosa roça o sublime ao mergulhar na eternidade das canções de Milton Nascimento

Ator e cantor pegou o trem mineiro para reafirmar laços com a obra do compositor em ótimo show

Publicado em 04/06/2024

Em 2019, ao estrear Estrada, show em que celebrou as raízes brasileiras de sua arte em movimento ascendente no mercado do teatro musical espanhol, Tiago Barbosa lançou mão de repertório eclético que provou o caráter multifacetado de sua voz, ainda que o repertório nem sempre fizesse jus ao talento do ator e cantor carioca que teve carreira transformada após estrelar a versão brasileira do blockbuster musical O Rei Leão.

Passeando por uma seleção de canções que evidenciaram o caráter versátil do intérprete, Estrada foi show que se destacou na trajetória de Barbosa graças à força cênica do artista em comunhão com os excelentes arranjos calcados em linha de metais que passaram pelo filtro da black music norte americana gêneros como o samba, o pop e o sertanejo.

Cinco anos depois, e já estabelecido como um dos principais nomes do teatro musical brasileiro, Barbosa retornou à música com Tiago Barbosa Canta Milton Nascimento, show no qual abriu mão do ecletismo em prol de canções do repertório de Milton Nascimento que, em sua maioria, foram referenciais na construção do songbook brasileiro.

Apresentado no fim da tarde da última quinta-feira, 30 de maio, em evento que superlotou os 140 lugares da Sala Paschoal Carlos Magno do Teatro Sérgio Cardoso, Tiago Barbosa Canta Milton Nascimento é, a rigor, mergulho raso na monumental obra construída por Bituca ao longo de 60 anos de trajetória artística.

Sob a (ótima) direção musical de Murillo Leme, que direcionou o excelente quinteto que acompanhou o cantor, o show teve como principal foco o repertório gravado por Milton na década de 1970, com previsível ênfase nas canções que compõem o magistral álbum Clube da Esquina (1972), título inicial de movimento da música mineira encabeçado pelo homenageado com Lô Borges, Beto Guedes, Wagner Tiso, Toninho Horta e Flávio Venturini.

Embora óbvia, a seleção do repertório majoritariamente voltado às canções do Clube da Esquina tem motivo especial na trajetória de Barbosa, que deu vida a Milton em musical que se propunha a contar a trajetória do movimento mineiro. Encenado em 2022, Clube da Esquina – Os Sonhos não Envelhecem voltou a elevar a cotação do ator no mercado do teatro musical brasileiro.

E mesmo com o baixo teor de novidade em comparação a outras homenagens do gênero, o show  Tiago Barbosa Canta Milton Nascimento cresce graças a excelente relação estabelecida por Barbosa com os músicos Alfredo Mãozinha (percussão), Rafael Piedade (guitarra e violão), Juninho Santos (baixo e vocais), Vinicius Maximo (bateria), além do próprio Murillo Leme, que assume teclados, violão e vocais.

Alguns dos arranjos de Leme dão importantes passos adiante no processo de estabelecer não apenas a relação de Barbosa com o repertório, mas principalmente ao ajudar a delinear uma assinatura própria do intérprete, evidenciada no primeiro grande número do espetáculo, Bola de Meia, Bola de Gude, potencializada pela percussão de Mãozinha afinada com os batuques reverentes à força da matriz africana.

Tiago Barbosa canta Milton Nascimento
Tiago Barbosa canta Milton Nascimento

Alocado no primeiro bloco do show, Bola de Meia, Bola de Gude dissipou impressão inicial de que Tiago Barbosa Canta Milton Nascimento seria show protocolar e excessivamente reverente aos arranjos das gravações originais, como deram a entender os dois primeiros números, Para Lennon e McCartney (1970) e Fé Cega, Faca Amolada (1974).

É verdade também que, a medida que ganhar a estrada, o show tende a azeitar os arranjos, que podem se aprofundar em Um Girassol da Cor do seu Cabelo ou encontrar tom mais apropriado a Nada Será como Antes, número em que os excessos vocais do cantor se sobressaíram, mas, justiça seja feita, teve as nuances ofuscadas por problemas de som do espaço.

Embora tenha voz talhada para grandes interpretações, Tiago Barbosa brilha mesmo quando baixa o tom e aposta em registros mais íntimos, fazendo crescer mesmo balada menor, Quem Sabe Isso Quer Dizer Amor, ou potencializando os versos de Travessia, que na voz de outros intérpretes já soam batidos.

São nestes momentos, quando dosa a intensidade vocal, que Barbosa roça o sublime e atinge a precisão de interpretações delicadas e até emocionantes no melhor bloco do show, quando enfileira títulos como Amor de Índio, Caçador de Mim e Beijo Partido

É quando o cantor se prova com capacidade para se cacifar como um dos grandes intérpretes da música popular brasileira, promovendo emoções genuínas. Emoções essas sublinhadas em em bonito número de união com a plateia ao som de Canção da América, momento responsável por fazer com que o artista vencesse de vez a timidez.

Aliás, a timidez de Barbosa e o nervosismo – inevitável em qualquer estreia -, é ponto a ser trabalhado em show que carece de uma direção cênica para alinhavar pontos ainda dissonantes. Nada, entretanto, que empane o brilho da apresentação. Afinal Tiago Barbosa Canta Milton Nascimento é show que já nasce afinado, mas que ainda pode se azeitar no percurso da estrada. 

Mesmo momentos mais singelos, como a participação especial da cantora Letícia Soares, que entrou em cena para interpretar três canções, duas ao lado do anfitrião, podem ser aperfeiçoadas. Ao mergulharem em praias alheias ao som de canções fora do repertório de Nascimento, Barbosa e Soares saíram dos trilhos mineiros para prestar tributos às influências e às paixões musicais do homenageado. 

A cantora e atriz Letícia Soares
A cantora e atriz Letícia Soares

Contudo, faltou maior contextualização e até certo critério na seleção. Uma das maiores cantoras do teatro musical brasileiro, Soares fez singela abordagem de Força Estranha e animou a plateia com Tiago ao som de Hey Jude.

Se Caetano Veloso, Roberto e Erasmo Carlos (1941-2022) e a dupla Paul McCartney e John Lennon (1940-1980) foram definidoras para a trajetória de Nascimento, no show soam como curiosidades que podem ser melhor exploradas, ainda que nada ofusque a beleza do dueto da dupla ao som da doída Sua Estupidez, que ainda pode ser mais profundo.

O desvio de rota é mero detalhe em espetáculo que jamais sai dos trilhos e reencontra o caminho para Minas e as influências latinas de Milton no excelente bloco final, quando Tiago Barbosa chega ao céu ao som de San Vicente e sai de cena em Clube da Esquina 2, número tão anticlimático quanto saboroso. 

O bis com Maria, Maria reafirmou a sina de Tiago Barbosa de intérprete talhado para o diálogo direto e popular com o público, apto a seguir seu trem independente do trilho que percorra.

Tiago Barbosa Canta Milton Nascimento é show que roça o sublime quando o cantor dosa os tons, comprovando que, sim, dentro do teatro musical há grandes intérpretes que, no momento certo, são capazes de pleitear uma vaga no seleto olimpo de grandes vozes da música popular brasileira, responsáveis por emoções reais principalmente quando se municiam de repertório à altura de suas vozes.

COTAÇÃO: * * * * (ÓTIMO)

Confira abaixo o repertório seguido na noite de 30 de maio no Teatro Sérgio Cardoso.

1- Para Lennon e McCartney (Lô Borges/ Márcio Borges/ Fernando Brant, 1970)

2- Fé Cega, Faca Amolada (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos, 1974)

3- Bola de Meia, Bola de Gude (Milton Nascimento/ Fernando Brant, 1988)

4- Nada Será como Antes (Milton Nascimento/ Ronaldo Bastos, 1971)

5- Tudo o que Você Podia Ser (Lô Borges/  Márcio Borges, 1972)

6- Um Girassol da Cor do seu Cabelo (Lô Borges/ Márcio Borges, 1972)

7- Quem Sabe Isso quer Dizer Amor (Lô Borges/ Márcio Borges, 2002)

8- Amor de Índio (Beto Guedes/ Ronaldo Bastos, 1978)

9- Travessia (Milton Nascimento/ Fernando Brant, 1967)

10- Caçador de Mim (Sérgio Magrão/ Luiz Carlos Sá, 1981)

11- Beijo Partido (Toninho Horta, 1975)

12- Canção da América (Milton Nascimento/ Fernando Brant, 1979)

13- Força Estranha (Caetano Veloso, 1979) – com Letícia Soares

14- Sua Estupidez (Roberto Carlos/ Erasmo Carlos, 1969) – com Letícia Soares

15- Hey, Jude (Paul McCartney/ John Lennon, 1968) – com Letícia Soares

16- San Vicente (Milton Nascimento/ Fernando Brant, 1972)

17- Clube da Esquina 2 (Milton Nascimento/ Márcio Borges/ Lô Borges, 1972)

BIS

1- Maria, Maria (Milton Nascimento/ Fernando Brant, 1976)