Crítica

Musical Cabaret no Kit Kat Club busca inovação, mas cresce ao não se dissociar do original

Estrelado por Ícaro Silva, Fabi Bang e André Torquato, montagem tem elenco coeso cresce com o desenvolvimento de tramas paralelas

Publicado em 11/05/2024

É natural que, ao deixar o espaço do 033 Rooftop, em São Paulo, após uma das sessões de Cabaret no Kit Kat Klub, o público mais atento se ressinta da falta de algumas canções que se tornaram assinaturas da obra criada pelo dramaturgo Joe Masteroff (1919-2018) ao lados dos compositores John Kander e Fred Ebb (1928-2004) sob a batuta do histórico diretor e produtor norte americano Hal Prince (1928-2019).

A versão que sai de cena neste domingo, 12, dirigida por Kleber Montanheiro, omite nada menos do que Maybe This Time e Mein Herr, canções imortalizadas em 1972 pela atriz e cantora Liza Minnelli, estrela da adaptação cinematográfica assinada por Bob Fosse (1927-1987), que não apenas inseriu de algumas canções, como mudou o curso da história narrada a partir das memórias do escritor Christopher Isherwood (1904-1986).

Sob a batuta de Kleber Montanheiro, Cabaret no Kit Kat Club, a despeito do título que remete à montagem em cartaz na Broadway idealizada em Londres em 2023, é, na verdade, a versão original do musical antes da transposição para as telas, sem as alterações de Fosse e as então novas canções compostas pela dupla Kander & Ebb que só foram incorporadas em sua totalidade pela montagem de 1998 na Broadway.

Ausências à parte, o espetáculo é majestoso não só pelos figurinos e pelo visagismo, assinados por Montanheiro e Louise Heléne, respectivamente, com inspiração na obra inglesa, mas pela opção do diretor de manter intacta a estrutura dramatúrgica brilhante do texto original de Joe Masteroff.

A montagem assume o risco, que se mostrou acertado. Se o primeiro ato compreende algo em torno de duas horas, o segundo se resolve em enxutos 40 minutos, que aprofundam a tragédia da dramaturgia que, diferente do que o filme e as montagens subsequentes fazem parecer, não é sobre a relação da dançarina Sally Bowles com o aspirante a escritor Cliff Bradshaw.

Ícaro Silva (Cliff) e Fabi Bang (Sally) em Cabaret no Kit Kat Club
Ícaro Silva (Cliff) e Fabi Bang (Sally) em Cabaret no Kit Kat Club

A relação entre a dupla é um dos caminhos, mas a espinha dorsal está na trajetória do amor fracassado entre a solteirona dona de pensão Fräulein Schneider e o fruteiro Herr Schultz, que se veem frente a frente com obstáculo intransponível.

Essa é a história que realmente dá movimento eficaz à obra, ainda que diminuída no filme de 1972 para fazer brilhar a estrela de Liza Minelli, então um dos principais nomes de Hollywood, e adotada na montagem brasileira de 2011, estrelada por Cláudia Raia.

Na pele de Fräulein Schneider, Anna Toledo encontra seu melhor momento em cena desde o excelente mergulho dramático em Mulheres Sonharam Cavalos, de 2021. Em Cabaret no Kit Kat Club, a atriz mergulha na tragédia que bebe diretamente da fonte brechtiana de uma Mãe Coragem (1941), relação até proposta no texto, mas aprofundada por Toledo.

É bonito o jogo da atriz com Eduardo Leão, intérprete de Herr Schultz. Construído como um bonachão, o personagem ganha contornos cada vez mais sombrios apelando para registro dramático que evita o melodrama e emociona. É bonito ver a troca da dupla, principalmente quando a figura nazista de Ernst Ludwig (Bruno Sigrist em momento iluminado) se apresenta como adversidade incapaz de ser superada.

Por outro lado, a relação entre Sally e Cliff tem sua chance de brilhar, ainda que seja construída em bases menos sólidas, o que ameniza a força dramática da separação anunciada. Fabi Bang poderia crescer no papel se mergulhasse com mais intensidade no drama de Bowles sem optar por tentar continuamente injetar registro cômico na personagem, nem sempre com êxito. A atriz cresce quando se deixa desconstruir em sua cena final.

Já Ícaro Silva faz pouco por seu Cliff, ainda que brilhe apareça na execução de Don’t Go, tema menos imponente no repertório, mas que o ator faz crescer. Acontece parecido com I Don’t Care Much, um dos temas do Emcee, personagem que ganhou ares icônicos graças a interpretação de Joe Gray e a reconstrução de Alan Cumming sob a batuta de Sam Mendes.

A dupla emancipou sexualmente a personagem ao reencenarem a obra em 1993 em Londres em montagem que inspirou o revival produzido na Broadway cinco anos mais tarde. Na pele de André Torquato, um dos principais atores de sua geração, a canção cresce para além de sua música opaca. 

Torquato reforça seu momento de brilho cênico, que foi mais radiante em sua parceria anterior com Kleber Montanheiro no musical Tatuagem, de 2022, no qual o ator foi força motora responsável por fazer do espetáculo um dos principais títulos daquela temporada.

Montagem inglesa de Cabaret at Kit Kat Club
Montagem inglesa de Cabaret at Kit Kat Club

Encenado no 033 Rooftop do Teatro Santander, espaço moldável para diferentes espetáculos, Cabaret no Kit Kat Club sobressai por fugir à proposta mais sedutora do que eficaz de se vender como “espetáculo imersivo”. 

A direção de Kleber Montanheiro foge à armadilha para emergir com montagem dinâmica em que há sim bailarinos e atores dispersos pelo público, mas nunca em busca de seguir uma fórmula que já mostrou em  obras anteriores claros sinais de desgaste.

O diretor não esconde que a base para seu Cabaret é a utilizada para a montagem no West End, mas consegue imprimir sua própria assinatura, assim como Bárbara Guerra, autora de coreografias imersas na pulsação das canções e não na aura burlesca que envolve a obra.

Mérito também da excelente direção musical de Fernanda Maia, que não descaracteriza as canções originais,mas adiciona tempero tropical aos arranjos, executados pela excelente banda de 12 instrumentistas mulheres capitaneadas pela própria Maia.

Entre pontos altos (o desenho de luz de Gabriele Souza e a concepção de cenário idealizada por Montanheiro) e baixos (as versões das canções assinadas por Mariana Elisabetsky, grande tradutora de dramaturgia, mas que opta pela literalidade das letras em detrimento das canções, nem sempre em uma métrica fluida) Cabaret no Kit Kat Club triunfa ao confiar em sua obra base, desvendando passos adiante sem jamais descaracterizá-la.

COTAÇÃO: * * * * (ÓTIMO)