Fernanda Montenegro estrela nova série do Fantástico sobre Nelson Rodrigues: “Ganho cultural para todas as plateias”

Publicado em 28/08/2017

A partir do dia 3 de setembro, Fernanda Montenegro será vista toda semana no Fantástico, na série Nelson Rodrigues – Por Ele Mesmo. A série é baseada no livro homônimo escrito pela filha do cronista, Sônia Rodrigues. A veterana da televisão atua ao lado de Otávio Müller, e orienta o ator em diversas passagens, como uma espécie de diretora, embora rejeite essa função. Confira a entrevista completa:

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Por que é importante manter o Nelson Rodrigues ainda fresco na essência da dramaturgia?

O Nelson quando vivo, do ponto de vista da dramaturgia era totalmente desacreditado. Depois que ele morreu, começou a ter um acerto de contas com esse extraordinário criador brasileiro que é tido como jornalista e cronista esportivo importante, e um memorialista, apesar de ninguém chamá-lo assim. As crônicas da vida do Nelson é o Brasil, somos nós seres humanos ali.

Como surgiu a ideia de participar de um projeto que tem como protagonista esse grande escritor?

Quando a Sônia Rodrigues fez o livro de crônicas sobre o pai, crônicas nunca publicadas, eu li. Eu havia convivido com ele durante 10 anos, em nossa extrema mocidade, e quis fazer alguma coisa sobre essas crônicas porque são tocantes, e aí fui buscar o Otávio Muller. Ele estava empenhado em compromissos no teatro, e novela, e isso ficou apenas em nosso pensamento. O Otávio trouxe de volta tempos depois a possibilidade de se fazer essas crônicas no teatro e conversando com o setor de definição artística da casa, houve essa ideia de virmos participar desse projeto.

Como é dirigir o Otávio nesse projeto?

O que se chama dirigir é muito interessante porque temos uma vida intensa de teatro e sabemos que muitas vezes nós temos diretores, que não tanto ensinam a gente a fazer, mas ajudam a como trazer a flor da narrativa de determinada zona, então eu gostaria de esclarecer, que é mais simples dizer que eu dirigi, mas o que houve na verdade foram conversas em torno do Nelson, e tanto sozinhos quanto com a equipe, colocamos na mesa o que pensávamos. Tem outro detalhe interessante, por isso chamo essa série de ‘crônica reportagem’ porque em torno da crônica existe o jornalista Nelson Rodrigues no complexo do grupo que organizou tudo. Houve essa ideia que acho nova na nossa TV, de fazer de uma crônica altamente literária e altamente existencial, social ou até política, uma introdução dessa humanidade, dessa transcendência, sem querer viajar muito, mas já viajando, eu não sabia que eu ia ser usada, então, eu não sabia que eu ia participar na frente das câmeras do que eu chamo agora de reportagem.

Por que reportagem?

O nome reportagem só veio porque me surpreendi numa conversa com meu colega Otávio, que foi filmada, e fomos buscar na Sônia Rodrigues coisas sobre o Nelson, ainda mais agora no capítulo sobre o Futebol brasileiro, então acho que no fundo é uma grande reportagem sobre um homem extraordinário que nos dá material para fazer esse tipo de trabalho. Eu estou muito feliz de finalmente encontrar o Otávio, e outros companheiros para trabalhar em torno de Nelson Rodrigues, um homem que depois de morto, o Brasil aceitou que é um gênio e que a minha geração, principalmente teatro, sempre soube que ele era.

Essa série seria uma homenagem a esse grande homem?

Esta série é uma herança do trabalho teatral. A proposta da crônica reportagem é uma nova visão a se registrar para o maior público possível, da carga emocional, existencialista, social de modalidades literárias. Um ganho cultural para todas as plateias.

Tem algum personagem ou história específica que te agrada mais?

Tem a Geni, de Toda Nudez Será Castigada, que é emblemática e a Alaíde do Vestido de Noiva, fico nessas duas. As mulheres do Nelson são ricas e poderosas cenicamente, mais que os homens. Ele tem um espaço muito traumático para a mulher na dramaturgia dele, e também denodas a esse feminino estertorante diante do que a vida lhes reserva.

Essa série vai ajudar o público mais novo? Essa é uma característica do Brasil que não reconhece o artista enquanto vivo?

É possível. Você sabe que há uma hora na vida do Nelson, que Carlos Drummond de Andrade diz que o teatro dele é podre, então veja bem o que esse homem aguentou. E eu não sei se foi como uma contestação da sua rejeição, que ele não endossou o golpe militar. Foi um período em que a gente trabalhou muito com ele. Ele teve um filho, foi contestador político, foi preso, foi condenado a 50 anos de prisão, enfim, a trajetória dele é por demais trágica, de perdas, crises de saúde e de desespero pela sobrevivência, desde cedo, quando o irmão morre diante dele assassinado. Como vivíamos bem próximos dele essa época, já depois do coma que ele teve, ao visitá-lo, Fernando (Torres) e eu, pedimos mais uma peça a ele que foi A Serpente, a última peça dele. Para o meu trabalho de formiguinha, ele escreveu O Beijo no Asfalto, Toda Nudez será Castigada e A Serpente, então acompanhamos de perto esses anos de rejeição, em que ele era só adorado como cronista esportivo. O mundo do futebol o adorava. Ele fez parte do Última Hora, que era um jornal claramente de esquerda e sendo tido como homem de direita, escrevendo A Vida Como Ela é, durante 10 anos. Houve um momento em que ele saiu, e eu penso que ele saiu porque em O Beijo no Asfalto, ele fala sobre o Última Hora, como falou sempre sobre as redações, de maneira muito escatológica, e isso está em toda a obra dos folhetins que ele escreveu. Quando chegou no teatro e foi um grande sucesso, aquilo incomodou, então pediram que ele mudasse o título, mas tínhamos um documento assinado pela alta direção do jornal que deixaria ir sem nenhum problema, mas na hora H, com o sucesso, houve um protesto. Fernando Torres que era o diretor do espetáculo disse: ‘não vamos tirar’. Depois ele saiu do Última Hora e foi para O Globo. Realmente do ponto de vista de dramaturgia, ele fez Vestido de Noiva, que foi um acontecimento histórico no teatro brasileiro, mas ele mesmo resolveu que tinha que lutar contra o sucesso, porque o sucesso estraga o artista. Então ele se envolveu numa dramaturgia celular, contestadora, surrealista, impressionista, e houve a rejeição não só de uma plateia, como também de uma área pensante, importante dentro da cultura brasileira, e o tempo deu lugar a esse gênio brasileiro.

Como é esse lado ‘reportagem’ que você se refere?

Esse lado que chamo de reportagem, é porque a crônica simplesmente a gente poderia chegar ali, ler e acabou, mas a própria figura do Nelson é tocante. Quando trabalhamos o texto dele, o fazemos na distância, mas olhando para a figura dele, conseguimos ler a rejeição que existia a ele. Não há um momento da história do teatro brasileiro contemporâneo, que não se esteja em algum lugar desse país fazendo Nelson Rodrigues.

Entre amigos, o Nelson chegava a comentar se ele se sentia insatisfeito com essas críticas? Como a senhora acha que ele reagiria ao momento que estamos vivendo, caso estivesse vivo (essa crise moral)?

É complicado porque não podemos falar por ele, mas tenho a impressão que ele não concordaria, porque não tem como defender o momento que estamos vivendo. Alguém que tem algum raciocínio não compactua com o terror que estamos atravessando. Acho que isso nunca aconteceu antes, sempre havia alguma reserva, alguma instituição humana ali, que podia até nos trair depois, mas nesse vazio que estamos, não me lembro. Não tenho porque duvidar que Nelson estaria no mesmo estupor que nós. Aliás, Nelson era o homem do estupor, a obra dele é um estupor, por isso ele é tão brasileiro.

Vocês têm esperança em relação à cultura?

É estranho porque tudo é cultura. Você não ter saneamento básico é um tipo de cultura. Você não ter boas escolas, bons hospitais é um tipo de cultura. O que a gente come, lê, vê na TV é cultura. A cultura é o próprio país. Todo país que tem respeito a sua cultura nos diversos espaços é o país. Enquanto o Brasil não entender isso culturalmente, vivido e atento não teremos um país. Esses homens que estão lá foram postos lá pelos nossos votos, e eles colonizaram o Brasil. É um governo que não nos pertence, e eles nem querem mesmo que pertença, afinal, quanto mais distante do povo melhor. Há um país em Brasília colonizando o Brasil mais que os portugueses, porque pelo menos os portugueses tinham que atravessar o Atlântico. Por incrível que pareça são brasileiros. Quando se fala em cultura, fala-se de forma elitista, como se algo sobre fosse mais importante, mas cultura não é só isso. Isso aqui que estamos fazendo não é cultura, e sim um ato cultural. Não se vai salvar a pátria com o nosso capítulo, mas é uma célula cheia de energia e plena do desejo de comunicação, também aprendemos fazendo.

Como foi a direção em especial?

Às vezes eu falo para o Otávio: “faz isso de novo”, mas não por estar errado, e sim por ter N possibilidades. Às vezes engasgou aqui, tropeçou ali, e fazemos isso mais como conversa do que como direção. Parece que a gente faz a nossa profissão como quem diz: “vamos à praia”, mas é um trabalho louco, gente. Repetitivo, vira-se um núcleo familiar, talvez mais forte que o sanguíneo. Na hora de se botar o pé na lama ou na glória, parece que foi tudo limpinho, que tudo correu perfeitamente de primeira, mas é resultado de montagem e muito esforço durante o processo.

Como foi o seu envolvimento nesse projeto?

Tem outro detalhe: Otávio e eu participamos como matéria prima para o produto, mas eu me espantei ao ver o que chamo de reportagem, que é a feitura da crônica: “ué, mas eu não estava preparada para entrar também”, eu disse. Eu acho que se criou algo muito mais instigante.

Como foi retratar essas crônicas? Tem alguma em especial que lhe encanta até hoje?

Eu já era adulta nos anos 50, nem a segunda grande guerra, foi tão traumatizante como a final da Copa do Mundo de 1950, como em um dos episódios que gravamos. Sabe o que eram 150 mil pessoas em completo silêncio? Foi um silêncio mortal, e o Nelson escreve sobre o futebol de forma tão existencial, e como ele trata do Brasil dentro da jogada. Só a crônica sequinha, isso se faz muito, mas uma interferência noticiosa é mais interessante. Nelson foi repórter policial e ele dizia que bastava-se dois ou três meses como repórter policial para virar um Balzac, porque é verdade.

O texto do Nelson é bem popular até hoje. Existe entre os atores, uma vontade de fazer Nelson Rodrigues…

Ele está nos espaços infinitos já, não está carnificado infelizmente.

Como foi o processo?

Esse negócio do ensaio, é uma troca de propostas, de diálogos. Que nós queiramos ou não, estamos totalmente sacramentados no processo teatral, então, nosso trabalho nunca é de ensinar, e sim de trocar possibilidades cênicas. Então não tem nenhum ensinando para o outro. Não se pode sacramentar de cima pra baixo, porque a gente sabe que não dá certo. É muito mais um encontro que seria cênico, se tivéssemos feito um espetáculo. Aqui existe um trabalho industrializado, não é artesanal como é feito no teatro, mas não há interferências na leitura, mas momentos de convívio na leitura. É como quando você está contando um caso, o outro vai lembra de alguma coisa, conta, e você continua contando o caso. Isso é legal e algo que eu ainda não tinha visto.

Fernanda, ficamos curiosos a respeito do seu cabelo…

Ator nunca tem a cara dele, da vida dele. Estamos sempre dependendo do personagem. Bigode, cavanhaque, no caso de homem. Enquanto eu não boto a roupa da velhinha rezadeira que vou fazer na novela do Walcyr Carrasco, lá no Tocantins, eu tento me segurar. Mas isso aqui é o caminho para o cabelo totalmente branco para fazer uma velhinha, como se eu já não fosse uma velhinha (risos). Mas acho que ainda vou fazer outra personagem com esse cabelo assim todo escovado.

*Entrevista realizada pelo jornalista André Romano

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