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Criador de Castelo Rá-Tim-Bum diz como incluiu temas sensíveis para crianças: “Falei com o coração”

À coluna, Flavio de Souza revela bastidores de programa infantil, que estreou na Cultura há exatos 29 anos

Publicado em 09/05/2023

Há exatos 29 anos, estreava na TV brasileira um dos principais programas infantis da história: Castelo Rá-Tim-Bum. Consagrado com prêmios e homenagens, ganhou um especial patrocinado por uma marca de biscoitos, com parte do elenco original, exibido pela Cultura em fevereiro. A série ainda guarda detalhes e bastidores inéditos que a coluna desvenda agora com seu criador, Flavio de Souza.

Da origem do Castelo (nasceu para ser uma regravação do Rá-Tim-Bum) à saída para trabalhar no SBT (escreveu uma novela jamais produzida), o escritor de 67 anos relembra a troca de ideias com o diretor Cao Hamburger e diz como conseguiu incluir temas sensíveis às crianças, como racismo e morte, em alguns episódios.

Confira abaixo, em tópicos, as curiosidades de Castelo Rá-Tim-Bum reveladas com exclusividade à coluna por Flavio de Souza:

Catavento, a “pré-história” do Castelo

Flávio de Souza, criador do Castelo Rá-Tim-Bum
Flavio de Souza criador de Castelo Rá Tim Bum

“O Catavento (1985) foi um Rá-Tim-Bum (1990) pobre. Tinha a mesma dinâmica, quadrinhos que compunham os episódios, todos com tema educativo explícito, porque a encomenda era de um programa de pré-escola destinado às crianças de baixa renda, que chegavam ao primeiro ano despreparadas. No Catavento, eu aprendi a escrever programas de TV para crianças escrevendo um programa de TV para crianças. Maior sorte, oportunidade incrível. Foram 120 episódios de 15 minutos. Ganhou vários prêmios, inclusive um no Japão”.

Rá-Tim-Bum sem Castelo

“O Rá-Tim-Bum ganhou medalha de ouro em um festival de cinema e TV [em Nova York] como melhor programa educativo. Emissoras de todo o mundo quiseram comprar, e foi aí que descobrimos que o som dos diálogos estava ‘grudado’ com as músicas. Portanto, não podia ser dublado. Programas para crianças não têm legendas, e o nosso era para a faixa etária da pré-escola.

Já havia a possibilidade de outro patrocínio da FIESP [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, que bancou o Rá-Tim-Bum], então foi decidido que seria usado para regravar todos os episódios. Todos que participaram da criação foram chamados, mas não puderam participar por outros compromissos profissionais.

Ficamos Cao Hamburger e eu inventando novos quadros, porque como o Rá-Tim-Bum foi muito experimental muita coisa realmente não deu certo e o que deu certo deu ‘muuuito’ certo. Durante alguns meses, criamos tantas coisas novas que o [Roberto] Muylaert [presidente da Fundação Padre Anchieta] e provavelmente a Beth Carmona, que era a diretora de programação, decidiram que era melhor fazer um programa novo. Então desenvolvemos e eu escrevi as sinopses”.

Saída para o SBT

“Saí depois de estar tudo criado e desenvolvido. Fiz a sinopse dos 50 episódios, que depois sofreu mudanças. O que aconteceu foi que meu contrato com o SBT acabou bem antes do prazo e deu tempo de escrever o roteiro do primeiro episódio e de mais 20 novos, porque a série teria só 50 mas havia verba para fazer mais 20”.

Cao Hamburger: “Melhor parceiro”

Cao Hamburguer com o elenco do Castelo Rá-Tim-Bum atualmente
Cao Hamburger com o elenco do Castelo Rá Tim Bum atualmente

“Cao foi o melhor parceiro que eu tive para criação. Entre as muitas coisas que a gente inventou, o castelo do Dr. Victor [Sérgio Mamberti] é inspirado no Frankenstein, uma das obsessões do Cao, e ele propôs torná-lo o centro do programa. Houve coisas que sei que foi ele que pensou, e uma coisa que eu pensei que foi transformar Dr. Victor em mago, além de cientista, e Nino [Cassio Scapin] ser aprendiz de feiticeiro, porque uma das minhas obsessões era o Mickey causando no filme Fantasia, do Walt Disney, o primeiro que eu vi na vida.

O primeiro Castelo já era esse mesmo. Há uma confusão pelo fato de o Cao e eu termos feito uma série chamada Perigo! Perigo! Perigo!, sobre acidentes domésticos comuns envolvendo crianças, que foi feito com o Lucas Silva e Silva no cenário do Mundo da Lua. Quando fomos inventar o Rá-Tim-Bum 2, já nos conhecíamos, criamos juntos essas vinhetas.

Ficou incrível, porque o Cao conseguiu fazer com todo o requinte e acabamento que ele queria dar para o Castelo. O Castelo é especial por causa do bom gosto dele, além do fato de que foi se formando um time de fazedores de programas infantis na TV Cultura, que começou com Bambalalão [1977]. Além deste que vos fala, várias pessoas importantes para o resultado já estavam lá, como Silvio Galvão, que fez os adereços mais malucos e todos os cenários incríveis do Mundo da Lua, com pouquíssimo recurso, e o Carlos Gardin, que assinou os figurinos e criou o visual de todos os personagens, do sapato à peruca, e fez coisas incríveis para o Rá-Tim-Bum.

Como o Castelo Rá-Tim-Bum abordou racismo e morte

Júlia Tavares interpreta Zula em Castelo Rá-Tim-Bum
Júlia Tavares interpreta Zula em Castelo Rá Tim Bum

Os temas já estavam escolhidos, quem cuidou disso foi a Anna Muylaert [coordenadora de roteiros], junto com a pedagoga principal, Zélia Cavalcanti. A morte talvez não estivesse prevista. Foi a morte do Wagner Bello [Etevaldo] que levou a isso. Eu inventei a Etcetera [Siomara Schröder] porque faltavam vários episódios. Eles foram gravados por blocos: todos com a Penélope, todos com o Dr. Abobrinha etc, e os últimos blocos foram com a Caipora e o Etevaldo.

Para falar sobre racismo, tomei um cuidado que tem a ver com o que acho sobre como temas devem ser transmitidos, não só para crianças, mas também adolescentes e adultos. Para a informação não entrar por uma orelha e sair pela outra, você tem que, em vez de falar com a cabeça das pessoas, tem que falar com o coração. Tudo que é dito textualmente não fica. Isso tem a ver com as mitologias de todos os povos da Terra. Eles falam sobre absolutamente tudo, mas usando histórias fantásticas, personagens com grandes qualidades ou defeitos e ação.

Desce o Catavento eu fui exercitando isso, sem ter noção na época, de fazer cenas que ensinassem com a seguinte meta: informação através da imaginação e a imaginação através da informação, ou seja, fazer cenas interessantes e divertidas que mostrassem o tema sem que os espectadores percebessem. Claro que ficou mais fácil no Castelo, porque a Zélia Cavalcanti trouxe uma visão mais contemporânea sobre educação e pré-escola, puxando tudo mais para o lado das artes e a cultura em geral.

Só para exemplificar: em vez de usar a Biba [Cinthya Rachel] e o Bongô [Eduardo Silva], eu inventei a menina azul [Zula, interpretada por Júlia Tavares], porque racismo tem em todos os povos. Há gente que odeia orientais, indígenas etc”.

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