Análise

Censura a beijo lésbico é o primeiro grande erro dos 100 capítulos de Vai na Fé

Clara e Helena deveriam se beijar na última quarta-feira, mas cena de novela das sete foi cortada

Publicado em 11/05/2023

Melhor novela atualmente no ar, Vai na Fé inova ao inserir temas progressistas em um ambiente teoricamente conservador. Tachada de “novela gospel” em razão do núcleo protagonista evangélico, a trama não se intimida ao abordar machismo, racismo e liberdade religiosa, tabus da igreja neopentecostal. Na véspera do capítulo 100, entretanto, a Globo cometeu o primeiro grande erro da produção das sete ao censurar um beijo lésbico.

Em Vai na Fé, a sexualidade é retratada de maneira livre e responsável, mas apenas em relação a héteros. Da pegação ao casamento, apenas casais formados por pessoas do sexo oposto têm direito a histórias bem desenvolvidas. Quando o assunto muda para a homossexualidade, a Globo parece pisar em ovos.

Yuri (Jean Paulo Campos) nega seu sentimento pelo colega de faculdade, Vini (Guthierry Sotero), que chegou a lhe dar um selinho de raspão. Clara (Regiane Alves), casada com o vilão Theo (Emilio Dantas), apaixonou-se pela personal trainer, Helena (Priscila Sztejnman), mas o único beijo entre elas foi uma armação para despistar homens em um bar.

O público progressista mostrou que é tão importante quanto o conservador (ou bolsonarista, que trocou de canal há anos) ao tornar a novela um dos assuntos mais populares nas redes sociais, obsessão da Globo em tempos de segunda tela e streaming. O casal lésbico, antes mesmo de ser oficializado, já ganhou torcida: o ship “Clarena” (Clara + Helena). Os mesmos fãs-clubes que divulgam Vai na Fé na web expuseram a indignação pelo beijo lésbico que não foi ao ar.

Para a imprensa e o público, o canal divulgou o seguinte trecho no resumo do capítulo 99: “Clara e Helena se beijam”. A cena ocorreria durante um treino de Helena na casa de Clara. A personal trainer, enquanto orienta um exercício, beija sua aluna deitada no chão da sala. Surpresa, a mulher de Theo não concorda com a atitude (embora tenha gostado), e a professora decide cancelar as aulas particulares.

A edição do capítulo, exibido na última quarta-feira (10), deixa nítido o corte. Clara olha fixamente para Helena, que imediatamente depois se levanta encostando a mão nos lábios, como se tivesse sido beijada. Sem o beijo, a cena e e toda a sequência perderam o sentido, pois a aula particular só foi escrita e gravada para que elas se beijassem em um ambiente íntimo, aumentando a tensão sexual entre professora e aluna que dita a história.

Helena sente o beijo de Clara, que não foi ao ar em Vai na Fé
Helena sente o beijo de Clara que não foi ao ar em Vai na Fé

Procurada pela coluna, a emissora preferiu não chamar de “censura” e atribuiu o corte a “estratégias de programação ou artísticas”: “Toda novela está sujeita a edição. Uma rotina que atende às estratégias de programação ou artísticas. Isso, inclusive, é sinalizado nos resumos de capítulos divulgados pela Globo”. O capítulo de quarta-feira foi mais curto em função do futebol, mas um beijo de cinco segundos não causaria danos à grade.

Qual o problema, Globo? Nem parece o mesmo canal que exibiu um beijo de Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg em horário nobre. Beijo gay não deveria ser mais tabu na emissora que assinou Amor à Vida, Em Família, Babilônia, Liberdade Liberdade, Orgulho e Paixão e outras produções com cenas de beijo e até sexo gay.

Ao censurar um beijo, a Globo mancha a ótima Vai na Fé, despreza parte do público e da equipe da trama (majoritariamente progressista). E mais: retrocede quase 20 anos no tempo, mais precisamente 2005, quando apagou o beijo de Júnior (Bruno Gagliasso) e Zeca (Erom Cordeiro) no último capítulo de América.

E, corrigindo o título desta análise: não foi erro. Isso tem outro nome. LGBTfobia em 2023 não dá mais.

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