Clássicos

Brasil do milagre, “ajuda” da Censura e 100% de audiência: os 50 anos de Selva de Pedra

Francisco Cuoco, Regina Duarte e Dina Sfat viveram triângulo amoroso em meio ao desejo de ascensão

Publicado em 11/04/2022

Há 50 anos – em 10 de abril no Rio de Janeiro e no dia 12 em São Paulo, num tempo em que não havia ainda as redes nacionais -, a TV Globo estreou um de seus maiores sucessos, também um dos maiores clássicos do gênero telenovela: Selva de Pedra, de Janete Clair, cartaz das 20h.

A história de Selva de Pedra

Logotipo da novela Selva de Pedra, de 1972, acompanhado do "em" dos créditos
Logotipo da novela Selva de Pedra de 1972 acompanhado do em dos créditos

A trama de Selva de Pedra se desenvolve no final dos anos 1960, começo dos 1970 – era habitual que Janete iniciasse suas histórias alguns anos antes da ação atual, e os acontecimentos evoluíssem até atingir os dias em que o público os acompanhava.

Na pequena Campos dos Goytacazes, interior fluminense, Sebastião Vilhena (Mário Lago) é um pregador de praça, que brande a Bíblia e evoca lições de moral enquanto expõe a esposa Berenice (Ana Ariel) e os filhos Diva (Dorinha Duval), Zelinha (Tessy Callado) e Cristiano (Francisco Cuoco), a humilhações de toda sorte. O rapaz toca bumbo durante as pregações, enquanto as meninas e a mãe vendem toscas flores de papel.

Um dia, todos são ridicularizados por Gastão Neves (Jorge Caldas), playboy local. Especialmente Cristiano, que no início da noite fica de tocaia na rua à espera de Gastão. Os dois se engalfinham e o delinquente puxa um canivete para ferir Cristiano, mas acaba ele mesmo ferido pelo objeto.

A jovem artista plástica Simone Marques (Regina Duarte) vê tudo da janela de sua casa, e sabendo da inocência de Cristiano o esconde no porão, onde faz seus desenhos e esculturas, a fim de que ele escape da polícia. Já interessada nele há algum tempo, Simone se apaixona, e é correspondida.

Cristiano e Simone decidem ir juntos para o Rio de Janeiro, a selva de pedra do título, e acabam se casando, ainda que a contragosto do pai dela, o alfaiate Francisco (Arnaldo Weiss). Eram os dias do chamado “milagre econômico” do governo militar, e havia para os personagens a perspectiva de uma vida melhor, com o surto de desenvolvimento que supostamente se vivia.

Cristiano (Francisco Cuoco) e Simone (Regina Duarte) em Selva de Pedra
Cristiano Francisco Cuoco e Simone Regina Duarte em Selva de Pedra

Enquanto brigava com Gastão, Cristiano perdeu a visita do tio rico, o armador Aristides Vilhena (Gilberto Martinho). Convidado por Berenice, o irmão de Sebastião foi ver a situação dos parentes e oferecer sua ajuda. Mas o orgulho e o ressentimento do pregador, outrora um estroina inconsequente, falam mais alto. É à procura de Aristides que Cristiano se coloca na cidade grande, para obter uma chance de ser alguém.

Simone e o amado vão morar na Pensão Palácio, de propriedade da ex-vedete Fanny (Heloísa Helena). O desenrolar da história revela que Fanny e Sebastião são conhecidos de longa data, quando todos os Vilhena pobres seguem a trilha de Cris e se mudam para o Rio.

Na pensão, além dos comerciantes Isaac (José Steinberg) e Abud (Germano Filho), que disputam a atenção de Irene (Agnes Fontoura), e do solícito Pipoca (André Valli), há a presença do malandro Miro (Carlos Vereza). Sozinho no mundo, ele não deixa passar oportunidades de se aproveitar dos outros.

Depois de tentativas frustradas, acaba sendo por meio de uma armação muito torta de Miro que Cristiano enfim se aproxima do tio Aristides. E vai trabalhar com ele no estaleiro Celmu, para ciúme do primo Caio (Carlos Eduardo Dolabella). Além de Caio, Tide também é pai de Cíntia (Célia Coutinho).

Separado da primeira esposa, Otávia (Mary Daniel), mãe dos dois jovens, Tide casou-se de novo, com Laura (Arlete Salles), mais moça que ele, de quem Caio e Cíntia não gostam muito. Um pouco aproveitadora, de origem pobre, Laura só quer saber de luxo e conforto, e passa Tide para trás com homens de sua idade.

Para acirrar ainda mais seus conflitos com o primo, Cris se torna alvo do interesse de Fernanda Arruda Campos (Dina Sfat), acionista do estaleiro e noiva de Caio. O filho de Sebastião vê nesse possível relacionamento a grande chance que tem de subir na vida e não ser somente um empregado do tio.

Como já vinha escondendo de todos o fato de ser casado, o que faz com que Fernanda pense que pode mesmo haver algo de mais sério entre eles, Cris começa a viver uma vida dupla, e negligencia seu casamento com a apaixonada e ingênua Simone.

Muito influenciado por Miro, Cris se deixa levar numa trama para se livrar de Simone e assim poder deixar o caminho livre para um casamento com Fernanda. No entanto, ele não tem coragem de dar cabo da vida da moça, a quem realmente ama – e é esse amor que o leva a ficar dividido entre seus planos de ascensão e a pureza de sentimentos que dignifica um homem.

Só que Miro leva o plano adiante e se dirige para uma casa em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, para onde Cris se mudou com Simone às escondidas para fugir do bandido. Uma carta na qual Miro fala dos planos de matar Simone como se Cris concordasse com eles faz com que a escultora fuja ao vê-lo e acabe sofrendo um acidente de automóvel.

O Fusca de Simone (Regina Duarte) pega fogo e explode após a perda da direção, em Selva de Pedra
O Fusca de Simone Regina Duarte pega fogo e explode após a perda da direção em Selva de Pedra

O Fusca de Simone explode e Miro, que presencia a cena, acredita que a jovem morrera na estrada. O que ninguém sabia é que Simone estava acompanhada de uma empregada, Lena (Tamara Taxman), que contratara para não ficar tão só e ajudá-la com a nova casa. É o corpo de Lena que é encontrado.

Simone consegue sair do carro antes da explosão, e é dada como morta. Ela pede a ajuda do amigo Jorge Moreno (Edney Giovenazzi), ator apaixonado por ela, e apenas ele e Seu Chico tomam conhecimento de que ela está viva. Enquanto isso, Cris é infeliz, culpado pela suposta morte de Simone, que tanto o amava.

No dia de seu casamento com Fernanda, Cristiano não consegue comparecer, tomado pelo remorso e pelo fato de não amar a milionária como amava Simone. Depois de passar um grande vexame na igreja, Fernanda passa a ter como seu maior objetivo destruir o amado.

Fernanda (Dina Sfat) na primeira versão de Selva de Pedra
Fernanda Dina Sfat na primeira versão de Selva de Pedra

E não só ela também essa disposição. Após uma temporada em Paris, Simone regressa ao Brasil sob a identidade de Rosana Reis, uma irmã que faleceu ainda pequena. Ela se reaproxima de Cristiano, disposta a vingar-se.

Como se não bastasse, a polícia também se põe no encalço do rapaz, acusado de matar Gastão – e a única testemunha de sua inocência é Simone, que todos acreditam estar morta e, viva, não tem motivos para livrá-lo da cadeia.

A fim de impedir que Simone, a essa altura já reconciliada com o marido e convencida de que ele não tivera culpa na trama para matá-la, testemunhe a favor dele e o livre da cadeia, Fernanda sequestra a rival na reta final de Selva de Pedra, e a mantém por semanas numa casa distante. Simone fica bastante debilitada psicológica e fisicamente, mas é resgatada a tempo de fazer com que Cristiano seja absolvido.

Após tanto sofrimento, o casal enfim inicia uma vida feliz, de realização amorosa – um filho a caminho, as lições aprendidas, o recomeço de Cristiano na indústria naval com sacrifício e o reconhecimento de Simone como artista plástica, numa carreira promissora. Uma nova etapa na selva de pedra.

Cena da versão original de Selva de Pedra na qual Cristiano (Francisco Cuoco) revê Simone (Regina Duarte), agora sob a identidade de Rosana, após sua suposta morte
Cena da versão original de Selva de Pedra na qual Cristiano Francisco Cuoco revê Simone Regina Duarte agora sob a identidade de Rosana após sua suposta morte

Há outros personagens e tramas de interesse em Selva de Pedra, claro. Como Flávia (Sônia Braga), filha de Jorge e sua ex-mulher, Walkíria (Neuza Amaral), acusada de assassinar Sérgio (Eliano de Souza), o amante da mãe, quando na verdade a própria Walkíria o havia assassinado, por ciúme da jovem.

Flávia chega a emudecer diante do trauma, e uma grande ajuda vem do amor de Guido (João Paulo Adour). Irmão de Sérgio, ele inicialmente se aproxima para se vingar, mas acaba arrebatado por ela.

Cíntia era casada com um funcionário de confiança do estaleiro, Marcelo (Emiliano Queiroz). O desenrolar da história revela que o pai de Marcelo também trabalhou no estaleiro e acabou acusado de envolvimento em atos criminosos, o que o levou a cair em desgraça e morrer pouco depois. Outra aproximação de um homem que pretendia se vingar, mas acabou apaixonado.

Sabedor de muitos segredos do estaleiro e dos Vilhena, inclusive do que envolvia o pai de Marcelo, era o velho marinheiro Mestre Pedro (Álvaro Aguiar), arrais que trabalhava no Celmu. Ele acabava ficando muito amigo de Cristiano e sofria com as chantagens de Miro, que conhecia o segredo da vida dupla da filha do arrais, Joana (Ângela Leal) – dançarina numa boate à noite.

Diva também foi uma personagem de destaque em Selva de Pedra. Ingênua e apaixonada pelo malandro Miro, a moça foi usada de todas as formas por ele, e obrigada a prejudicar Cristiano, por exemplo, ao revelar o endereço do irmão e de Simone em Petrópolis.

Interferência da Censura

A intenção de Janete Clair era fazer com que Cristiano e Fernanda se casassem, já que para todos os efeitos o personagem havia ficado viúvo com a “morte” de Simone. Mas a Censura implicou com o fato, com a desculpa de que poderia ser visto como um incentivo à bigamia – ainda que o público soubesse que não havia bigamia premeditada e consciente da parte do personagem de Francisco Cuoco.

Assim, a autora teve que jogar fora dezenas de capítulos de Selva de Pedra já escritos, posteriores ao casamento de Cristiano e Fernanda. E a solução para o enredo foi fazer com que o moço deixasse a noiva no altar, perturbado pela culpa de ter causado, mesmo que indiretamente, a morte da amada esposa.

Sem essa intenção – e sempre é bom reforçar: Censura, nunca mais! -, a ação do órgão do governo acabou fazendo com que Janete Clair desenvolvesse sua história de uma forma ainda mais envolvente e emocionante, com lances que mobilizaram a expectativa do público.

A perturbação de Fernanda, potencializada pelo abandono na igreja, tinha raízes hereditárias – a mãe da jovem, a jornalista Vivi (Lídia Mattos), explicou que seu falecido marido também sofria crises sérias. O fator genético foi evocado para contextualizar a loucura de Fernanda.

Claro que Janete Clair poderia ter criado uma história igualmente envolvente sem essa “colaboração” da Censura – capacidade que já havia demonstrado em trabalhos como Véu de Noiva (1969/70), Irmãos Coragem (1970/71) e O Homem que Deve Morrer (1971/72), suas três novelas imediatamente anteriores a Selva de Pedra. Mas o tormento dos cortes e o novo rumo tomado acabaram se revelando uma grata surpresa no encaminhamento do enredo.

Marca histórica de ibope

Simone (Regina Duarte) e Cristiano (Francisco Cuoco) na cena da revelação que marcou 100% de audiência
Simone Regina Duarte e Cristiano Francisco Cuoco na cena da revelação que marcou 100 de audiência

Selva de Pedra foi um sucesso de audiência, e os índices ascenderam conforme os lances dramáticos e românticos criados por Janete Clair envolviam mais e mais o público, ansioso pela resolução do caso de amor de Cristiano e Simone, da revelação de que a mocinha estava viva e Rosana era uma falsa identidade, as renovadas maldades de Fernanda e Miro, que se aliaram…

Além de outros focos de interesse como a jovem Flávia (Sônia Braga), filha de Jorge e sua ex-esposa Walkíria (Neuza Amaral), acusada de matar o amante da mãe, Sérgio (Eliano de Souza). Tamanho trauma a leva a perder a voz. O amor do irmão de Sérgio, Guido (João Paulo Adour), que inicialmente se aproxima para se vingar, colabora com o restabelecimento de Flávia – e da verdade. A assassina era Walkíria.

No entanto, o grande clímax da narrativa, com a revelação – para os personagens – de que Rosana Reis na verdade era Simone, registrou para Selva de Pedra a marca histórica de 100% dos televisores ligados no Rio de Janeiro em 4 de outubro de 1972, durante a exibição do capítulo 152.

Reprise no horário nobre

Selva de Pedra
Selva de Pedra

Em 1975, a TV Globo pretendia estrear no dia 27 de agosto em sua faixa das 20h a novela Roque Santeiro, de Dias Gomes, marido de Janete Clair. Só que a Censura proibiu a exibição da produção, dirigida por Daniel Filho, com Lima Duarte (Sinhozinho Malta), Betty Faria (Viúva Porcina) e Francisco Cuoco (Roque Santeiro) nos papéis principais.

A emissora tapou o buraco com uma reprise compacta de Selva de Pedra, enquanto uma novela inédita era produzida às pressas. Prevista para durar apenas um mês, Selva de Pedra chegou a 76 capítulos na ocasião, com audiência digna de inédita, e preparou o terreno para mais uma história de Janete Clair: Pecado Capital.

É essa versão levada ao ar em 1975 que existe preservada no acervo da TV Globo. Com o passar dos anos, cerca de 400 fitas usadas para gravação e edição dos 243 capítulos originais foram reutilizadas.

Segunda versão, também em horário nobre

Em 1985, devidamente liberada e regravada desde o início com um novo elenco, Roque Santeiro chegou à telinha e atingiu um dos grandes êxitos de audiência da história da televisão brasileira. Tanto que a TV Globo acabou decidindo apostar num enredo já conhecido, em nova roupagem, para sucedê-la.

Assim, a decisão foi de fazer uma segunda versão de Selva de Pedra – agora modernizada, com outros atores, reduzida de quase dez para seis meses e gravada em cores, o que também ajudaria nas vendas da produção. Regina Braga e Eloy Araújo foram os responsáveis pela adaptação.

O rosto de Tony Ramos formado pela 'Selva de Pedra' na abertura da novela de 1986
O rosto de Tony Ramos formado pela Selva de Pedra na abertura da novela de 1986

Diretor de boa parte da novela de 1972, Walter Avancini foi designado para implantar a nova versão, à frente dos primeiros 20 capítulos. Depois disso, Dennis Carvalho assumiu a novela, com a parceria de José Carlos Pieri. E posteriormente Pieri ganhou a companhia de Ricardo Waddington na direção.

Tony Ramos, Fernanda Torres, Christiane Torloni e José Mayer foram os escalados para viver, respectivamente, Cristiano, Simone, Fernanda e Caio. Um grande destaque do remake foi Miguel Falabella na pele de Miro. o mau-caráter foi novamente um sucesso popular, sem que o novo intérprete imitasse Carlos Vereza.

Selva de Pedra 1986
Tony Ramos e Fernanda Torres na segunda versão de Selva de Pedra

Até a estreia da segunda versão de Pantanal, em 28 de março de 2022, o remake de Selva de Pedra foi a única produção nesse estilo – ou seja, a partir de outra, da emissora ou da concorrência – a ser exibida pela TV Globo em seu principal horário de novelas, o das 20h, hoje 21h.

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