Diversidade

Consciência negra: Netflix quer mais inclusão nas suas produções

Diretora de produção no Brasil, Maria Angela de Jesus conta a própria história e como a empresa trabalha para isso

Publicado em 17/11/2020

Mais diversidade e inclusão. A Netflix quer que suas produções originais tenham mais mulheres e pessoas negras envolvidas e isso diz respeito também ao Brasil. Quem conta é Maria Angela de Jesus, diretora de originais da Netflix no País.

Ela falou durante o Seminário Internacional Mulheres no Audiovisual, no começo de novembro, dentro da programação da 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. A conversa foi com Debora Ivanov, produtora e ex-presidente da Agência Nacional de Cinema (Ancine) e idealizadora do seminário.

Debora abriu a conversa lembrando que as mulheres formam 51% da população brasileira e os negros, 54%. “As mulheres ocupam 20% da direção e roteiro, e as mulheres negras têm participação perto de zero“, afirma.

Do alto de sua experiência como produtora e também na diretoria do colegiado e depois na presidência da Ancine, Debora diz ser necessário construir caminhos para mudar esse cenário.

Ela chama atenção em especial para os cargos de liderança do audiovisual, nas tomadas de decisão, como roteiro e direção, que são “onde se constrói o imaginário da sociedade”, conforme afirma.

Na conversa, transmitida em formato de live, Maria Angela falou da sua trajetória profissional. Nascida em Mogi Mirim (SP), ela se lembrou da origem humilde, dos desafios que enfrentou na sua trajetória, do sonho de ser jornalista e poder viajar o mundo, como o personagem belga dos quadrinhos As Aventuras de Tintim.

Para ela, como mulher e negra, poderia ter sido mais fácil se as ideias hoje mais presentes já fossem aplicadas na época. Maria Angela considera que falar em inclusão e diversidade é facilitar a vida e abrir oportunidades.

No alto escalão local da gigante do streaming – considerada por ela uma janela para se levar a produção nacional para o mundo todo -, Maria Angela sintetiza o desejo do passado ao seu presente: “Acho que me tornei uma Tintim pretinha“. 

Diversidade e inclusão

De acordo com a executiva da Netflix, a indústria do audiovisual vem de um passado quando não gostava muito de contar histórias de discriminação e racismo. “Essa é a força da inclusão e diversidade, é poder abrir essa força, é estarmos todos falando a mesma língua“, afirma.

Na Netflix, Maria Angela de Jesus encontrou um olhar novo, pra frente, “uma possibilidade de ter uma produção que se faz no Brasil no mundo todo”. Ela detalha: “Logo que eu fui contratada, fui pra Los Angeles, passei meses para entender a empresa, a sua cultura“.

Uma grande surpresa foi ver a grande quantidade de funcionários negros em posições de comando, liderança, diretores: “Eu olhava e dizia que era uma maravilha“.

Ela conta que, no Brasil, a empresa promove encontros trimestrais, onde se pode falar do assunto abertamente. “Poder falar sobre isso, trazer o tema sem se preocupar, mostrou que eu estava no caminho certo e que a empresa tinha a preocupação. Desde então, temos vivido essa mudança internamente. A mudança tem de acontecer de dentro pra fora“.

O profissional negro tem de ser bem recebido, tem de se sentir parte do meio, ele tem de se sentir parte integral dessa formação do quadro de funcionários.

A diretora de produção no Brasil lembra que na matriz da Netflix há o cargo de vice-presidente de inclusão e diversidade, recentemente criado, e ocupado por Vernã Myers, de quem ela cita a frase: “Diversidade é convidar todo mundo para uma festa, inclusão é tirar a pessoa pra dançar“.

Para quem assiste ao conteúdo, o reflexo é automático. “Queremos cada vez mais buscar olhares diversos, histórias diversas. A grande preocupação é sair das histórias únicas”, relata Maria Angela, para quem o desafio é trazer histórias que representem os assinantes na tela. “Nós temos trazido fortemente conteúdos da África do Sul e vemos como eles reverberam”.

Segundo Maria Angela, conteúdos protagonizados por mulheres vêm crescendo. “São vozes para o universo do entretenimento. Esse impacto se reflete na criação de uma nova perspectiva, de um mundo mais diverso, de um mundo que tenha uma conexão com nosso público. A gente está no mundo todo, fala com todas as classes sociais”.

Ela cita o exemplo da série Sintonia, que teve muita força ao abordar jovens da Zona Leste de São Paulo. “Quando se fala em autenticidade do conteúdo é porque vem de alguém do universo contando”, diz.

E complementa: “Tem de ter mulher, tem de ter LGBTQ+ contando história do seu ponto de vista, ter essa diversidade tanto na frente quanto atrás das câmeras“. Sintonia (2019) tem direção de Kondzilla e ganhará segunda temporada.

No entanto, já em 3% (2016/20), primeira série original da Netflix no Brasil, com temporadas anteriores à sua chegada à empresa, Maria Angela nota que havia preocupação com o tema diversidade.

Foi um bom exemplo de um projeto que teve inclusão e diversidade nas quatro temporadas (…). Isso tem um impacto que se reflete na nova perspectiva, de um mundo mais inclusivo, mais diverso.

Novos talentos

Maria Angela de Jesus diz que o foco é promover a inclusão sob diferentes perspectivas, fomentando as indústrias locais. Há um programa interno de treinamento, para buscar jovens das periferias, com menos possibilidades para entrar no audiovisual devido à própria constituição de mercado.

A executiva explica que o trabalho é feito em parceria com as produtoras, num programa onde há investimento da Netflix. “A gente traz os jovens pra trabalharem na produção: em figurino, produção em si, para aprender. O bacana é que o aprendizado os leva para outros projetos, diz.

Outro programa interno das produções da Netflix também abre espeço na produção de fotografia, chamado Shadow, quando se coloca um jovem em treinamento para ter a vivência do tamanho e da complexidade de uma produção, para crescer e abrir mais oportunidades.

Não estamos fazendo favor. Precisamos abrir oportunidades para novas vozes, novas perspectivas, para outras vivências. Essa é a grande transformação para o nosso mercado”. Na opinião de Maria Angela, a diversidade traz bons negócios, além de ajudar a sair dos estereótipos.  

Trajetória pessoal

Maria Angela de Jesus começou no jornalismo impresso por meio de um programa para recém-formados da Editora Abril, onde escreveu sobre cinema na revista Veja. Não parou mais de atuar na área.

A transição do jornalismo especializado em cinema para a produção para televisão foi, segundo ela, natural. “O meu sonho sempre foi o de trazer histórias. Os livros me marcaram muito“, diz, lembrando que foi desde cedo incentivada à leitura em casa.

Ela também trabalhou junto aos organizadores da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Nesse trabalho, conheceu diretores como o português Manoel de Oliveira e o norte-americano Quentin Tarantino, além de ter feito contato com o crítico de cinema já famoso, Rubens Ewald Filho (1945-2019).

Olhar pra trás e lembrar-se desse começo é muito gratificante“, diz Maria Angela. Foi com Ewald Filho que ela entrou no meio televisão, na programadora HBO Brasil, em 1996. Foram mais de 20 anos na empresa, onde ela foi da produção de programas especiais à direção de produções originais.

Em 2004, a HBO começou a produzir séries de ficção no Brasil, num momento em que o mercado começava a se estruturar para este fim. “Vínhamos de períodos complicados. Não existia produção independente de TV. E nós fomos buscar profissionais do cinema, rememora, ao citar os dois primeiros projetos – os seriados Mandrake (2005/07, estrelado por Marcos Palmeira) e Filhos do Carnaval (2006, com Jece Valadão)“, respectivamente, produzidas pela Conspiração e Gullane Filmes. “Era tudo muito novo, tudo muito experimental”, afirma.

Há três anos, Maria Angela ingressou na Netflix, onde tem atuado à frente de grandes produções nacionais, como as já citadas 3% e Sintonia, além de Coisa Mais Linda (2019-2020) e a série mais recente Bom Dia, Verônica, só para citar algumas produções originais.

A executiva tem trabalhos como escritora. Escreveu livros da Coleção Aplauso, da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, para a qual fez o perfil da atriz Ruth de Souza, Ruth de Souza – Estrela Negra. Também para a mesma editora, Maria Angela escreveu a biografia da atriz Eva Todor.

A live de Debora Ivanov com Maria Angela de Jesus no Seminário Internacional Mulheres no Audiovisual pode ser assistida abaixo:

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