Nilton Travesso chega aos 90 com bem mais que 90 histórias para contar

Publicado em 20/05/2024

Homem de TV que pavimentou a base de sua formação cultural entre espetáculos de ópera no Theatro Municipal de São Paulo, na década de 1950, Nilton Travessou queria mesmo era ser tenor. Mas, informado de que não possuía atributos para tanto, fez arrefecer qualquer objetivo de seguir naquele métier. Meteu-se num curso de cinema e seguiu frequentando a Praça Ramos, onde contentava-se em ver apresentações de graça ou faturar um trocado como figurante.

Mas foi lá mesmo, entre colegas de bastidores da coxia do Municipal, que soube que Paulo Machado de Carvalho estaria preparando a inauguração de uma estação de TV para o Grupo Record no bairro do Aeroporto.

Órfão de pai ainda adolescente, com mãe e duas irmãs menores para sustentar, resolveu se inscrever no curso que propunha selecionar um pequeno grupo de futuros câmeras para o canal 7. Passou na peneira e lá estava, em 27 de setembro daquele mesmo ano, botando uma emissora no ar, ao lado de outros novatos.

Resumindo bem, começa assim a trajetória do homem que chega hoje, 20 de maio de 2024, aos 90 anos, contando 71 desde que estreou nesse cenário. É bom dizer que no período em questão, ele acumula bem mais que 90 histórias fundamentais para a TV que se construiu no Brasil, dita uma das melhores do mundo.

Na Record, Travesso logo se tornaria parceiro de trabalho de Antonio Augusto Amaral de Carvalho, o Tuta, um dos filhos de Paulo Machado. E logo conheceria Marilu Torres, com quem compartilha o mesmo teto até hoje. Foi o Bauru, também funcionário da Record (e que se tornaria famoso ao batizar o Bauru do Ponto Chic, em São Paulo) que levou Marilu, sua prima, ao conhecimento de Travesso. Ela era bailarina, profissional que ele buscava para determinado programa. Deu match, dois filhos, cinco netos e outras tantas décadas de casamento.

Como naquele princípio a TV era um terreno a ser plenamente desbravado e ninguém entendia muito do assunto, todo mundo aprendia a dirigir com o carro andando, o que resultou em algumas das iniciativas mais produtivas para o crescimento da indústria. Paradoxalmente, a falta de métodos e conceitos incentivava a experimentação, permitindo avanço e vasto repertório.

Na Record da era Machado de Carvalho, Travesso compunha a chamada Equipe A, formada também por Tuta, Manoel Carlos e Raul Duarte.

Lá deram seguimento e expandiram a era dos grandes festivais de música, iniciada pela Excelsior em 1965.

Lá difundiram de Bossa Nova a MPB e Tropicália, passando por Jovem Guarda e Mutantes. Produziam cenas ao vivo com nomes como Elis Regina, Maysa, Jair Rodrigues, Chico Buarque, Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Wanderléia, Cely Campelo, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethania, Nara Leão, Caçulinha, Ronnie Von, Zimbo Trio, MPB 4, Rita Lee, Wilson Simonal, Elizeth Cardoso e tanta gente que nem cabe aqui enumerar. Nunca houve uma concentração tão grande de tantos medalhões musicais na mesma tela.

Fez-se a Família Trapo, com Ronald Golias, Renata Fronzi, Ricardo e Renato Corte Real, Cidinha Campos e um certo Jô Soares, que foi contratado pela Record de tanto Travesso insistir na sua aquisição junto ao “Alfredinho”, como chamavam Alfredo Machado de Carvalho, outro herdeiro de Paulo Machado.

Nos anos 1970, Travesso se transferiu para a Globo e fez a primeiríssima edição do que a gente viria a chamar de “videoclipe”. A proeza se deu pelo Fantástico, que curiosamente deixou o diretor de fora das comemorações pelos 50 anos do programa, no ano passado. Mas foi o Nilton quem botou Ney Matogrosso para cantar “América do Sul” enquanto a câmera o focalizava em set externo, longe do estúdio. O diretor criou ali uma espécie de amplificador artesanal, composto por gravador portátil munido de uma corneta para expandir o som e permitir que o artista sincronizasse seus movimentos labiais de acordo com o áudio projetado. Até então, cantores só mexiam a boca para cantar em cenas registradas em estúdio. Era estranhíssimo ver Roberto Carlos dirigindo seu conversível pelas curvas da Estrada de Santos com cachimbo na boca, enquanto o som acusava sua voz a cantar.

No final da década de 1970, de tanto insistir com Boni para que a Globo criasse um núcleo de produção em São Paulo, tratou de expandir as atividades do endereço onde antes só funcionava o jornalismo, na Praça Marechal Deodoro. Eram estúdios de dimensões modestas (para não dizer apertadas), que abrigaram programas como a revolucionária TV Mulher e o memorável infantil Balão Mágico.

Às 10 da manhã, uma sexóloga dava a real para uma mulherada ávida por informações sobre o próprio corpo, discorrendo sobre orgasmo, gravidez, autoestima e saúde feminina, uma cartilha da qual em geral essa plateia fora privada, ainda mais após quase 20 anos de repressão promovida pela ditadura militar.

Na mesma época, Travesso promoveu a chegada do Som Brasil às manhãs de domingo, então com Rolando Boldrin, permitindo que ele fosse quem quisesse ser, sem impor arestas ou paderão ao modo ímpar que ele tinha para prosear e contar histórias, o que era seu grande valor.

Nos anos 1990, o nosso aniversariante estava empenhado em fazer acontecer a dita TV Classe A, do seu Adolpho Bloch. A Rede Manchete tinha, afinal, as melhores intenções e grandes profissionais, quando Benedito Ruy Barbosa levou para lá o sonho de botar na tela o seu “Pantanal”, texto rejeitado pela Globo na época. Foi Travesso quem sugeriu então a contratação de Jayme Monjardim para tocar a novela que romperia as barreiras dos estúdios e exploraria in loco um bioma pouco conhecido pelo próprio pais.

Deu no que deu. O sucesso foi tamanho, que 30 anos se passaram até a Globo se render ao projeto engavetado, então usando como referência toda a concepção  impressa por Monjardim na versão original.

E como Travesso esteve em todos os lugares que afetaram de modo positivo a TV nesses 71 anos, quase como um Forrest Gump, não foi ao acaso que o melhor período de teledramaturgia no SBT tenha ocorrido durante sua gestão. De fala mansa e diplomático, fez avançar na então futura sede da emissora, na rodovia Anhanguera, a encantadora cidade cenográfica que abrigaria a mais bela versão de “Éramos Seis”. Com todo respeito a Glória Pires, que foi dona Lola na produção realizada pela Globo, quem viu Irene Ravache no papel da matriarca certamente a tem como exemplar mais pefeito da personagem.

É que Travesso vai carregando afetos por onde passa. Convém reparar que o tema de abertura do TV Mulher nasceu de um breve telefonema a “Ritinha”, a quem ele conhecia desde os tempos dos Mutantes, nos anos 1960, pela Record. Da mesma forma, quando assumiu a dramaturgia do SBT com carta branca de Silvio Santos e Luciano Callegari, o primeiro nome convidado para “Éramos Seis” foi justamente Irene, com quem Travesso estabelecera uma relação de confiança e amizade nos idos do TV Mulher, que foi apresentado pela atriz após a saída de Marília Gabriela do posto.

O SBT não tinha bons precedentes no campo da dramaturgia. Senor Abravanel chegou a fazer estardalhaço com a contratação de Walter Avancini, uns dois anos antes, mas, ao primeiro sinal de fracasso, abortou seus projetos. Assim, ao ser chamada para viver dona Lola, Irene disse a Travesso que só acreditava na proposta porque o convite vinha dele. Fosse outro, disse, não embarcaria naquele bonde.

A partir da presença convirmada de Irene no protagonismo da novela, vieram outras grifes, como Osmar Prado, Othon Bastos, Denise Fraga e Tarcisinho, com quem Travesso já havia trabalhado na Manchete e, na verdade, conhece desde o berço – foi o diretor quem levou Tarcísio Meira a estrear na TV.

“Éramos Seis” ainda revelou um certo Caio Blat, ainda menino de tudo, além de Wagner Santisteban e, nunca é demais lembrar, Ana Paula Arósio, em breve cena especial.

Travesso encaminhou Arósio para um curso de interpretação bancado pelo SBT, trajeto que acompanhei de perto, como colega de classe dela. Todo o processo de chegada da então modelo ao novo ofício fora tratado de modo a poupá-la de qualquer vexame. Conhecendo o potencial da moça para as artes dramáticas, o diretor só não queria queimá-la na largada. E esperou mais de um ano para colocá-la em cena do início ao fim de um folhetim, devidamente estudada para tanto, no remake de “Os Ossos do Barão”.

Quando Silvio Santos reduziu os valores de investimento na dramaturgia e passou a apostar em tramas infanto-juvenis e adaptações de novelas hispânicas, Travesso retirou seu time de campo e foi para a Band, onde também convenceu Johnny Saad a produzir novela. Foi quase andorinha de um único verão, e não teve efeito para o crescimento da emissora, mas “Serras Azuis” revelaria outro rosto lançado por Travesso, e aí está Maria Fernanda Cândido, hoje requisitada para produções internacionais, que não nos deixa mentir.

Na Band, aconselhou Saad a liberar Luciano Huck de um contrato que não permitiria sua ida imediata para a Globo e deu aval para a chegada de Otaviano Costa, um moço que vinha da TV cuiabana e parecia ótimo, mas não tinha projeção para além da seara matogrossense.

Nos anos 2000, o diretor voltaria às manhãs da Globo para comandar o Mais Você, de Ana Maria Braga. Dono de uma gentileza rara no meio televisivo, endossou seu talento para compreender a alma feminina no comando do Saia Justa, o mais longevo programa da TV paga brasileira. Em seu período à frente do semanal, atravessou várias trocas no elenco, desde a ancoragem de Mônica Waldvogel até o comando de Astrid Fontenelle, com quem já havia trabalhado no final dos anos 1980, pelo Mulher 90, via Manchete, antes mesmo de ela virar nome estelar na saudosa MTV Brasil.

E já na curva entre os 70 e 80 anos, voltou a conviver com o amigo de juventude, o grande Tuta, na Jovem Pan, onde ensinou os primeiros treinos de câmera a uma turma de rádio que mal sabia de portar diante das lentes. Tuta foi visionário ao notar que a internet colocaria o rádio em um novo patamar, permitindo que os ouvintes, quando quisessem, pudessem acessar imagens dos profissionais que antes restringiam seus relatos em forma de áudio. A ideia era aproveitar os recursos da web sem perder a agilidade do rádio.

A velha dupla da Equipe A aproveitou a convivência para gravar uma série de programas preciosos batizada como Dois Diretores em Cena, em que resgatam histórias dos primórdios da Record e daquelas estrelas que estavam engatinhando na época. O resultado está disponível em podcast nas principais plataformas de áudio.

Nilton Travesso e Tuta: Dois diretores em Cena resgata primeiras décadas da TV no Brasil. Crédito: Divulgação

Nessa época de Pan, voltou a conviver com outro conhecido dos idos de Record. Era só atravessar a avenida Paulista para assumir duplo expediente numa idade em que a grande maioria das pessoas sonha em se aposentar. Da Pan, Travesso seguia para a TV Gazeta, onde dirigia o programa de Ronnie Von.

Nilton é constantemente celebrado pelos profissionais que formou, da Record à Pan, passando por Globo, Manchete, SBT e Band, num longo zapping de canais. Difícil é encontrar quem não tenha cruzado com o italianinho de ascendência siciliana nesses 71 anos. Entre uma cena e outra, abriu uma escola de formação de atores, que funciona sob a referência de seu trabalho no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo.

Ao Nilton, todos os nossos parabéns e a certeza de que outras histórias suas serão contadas em livro biográfico, que preparo para lançar em breve, se Santa Clara, padroeira da TV, me ajudar.

Abaixo, segue o link da edição do Persona, produção da TV Cultura, com Nilton Travesso, produção de três anos atrás.