Há 19 anos morria Dias Gomes, um adorável subversivo

Publicado em 20/05/2018

No dia 18 de maio de 1999, portanto, há exatos 19 anos, o dramaturgo Alfredo de Freitas Dias Gomes faleceu, vítima de um acidente automobilístico em São Paulo, cidade que na ocasião visitava acompanhado de sua segunda esposa, a atriz Bernadeth Lyzio, com quem teve duas filhas, Mayra e Luana. Devido a uma manobra imprudente do taxista que os levava, que fez uma conversão proibida num cruzamento da Avenida Nove de Julho, região dos Jardins, e foi atingido por um ônibus que transitava no corredor destinado a ele, no centro da pista, Dias foi lançado a metros do automóvel e acabou morrendo. Tinha 76 anos.

Dias Gomes com a segunda esposa e as filhas
Dias Gomes com a segunda esposa e as filhas Divulgação

Dias Gomes escreveu seu primeiro texto teatral aos 15 anos: A Comédia dos Moralistas, que lhe rendeu um prêmio de 500 mil-réis concedido pelo Serviço Nacional de Teatro e pela União Nacional dos Estudantes. Em 1942, após já ter estreado em teatro escrevendo “As Grandes Batalhas da História” na Rádio Vera Cruz, iniciou o ciclo de trabalho com Procópio Ferreira, que encenou sua peça Pé-de-cabra e outras duas, num contrato de exclusividade dos textos de Dias para ele.

Procópio Ferreira
Procópio Ferreira Divulgação

No final da década de 1940, conheceu Janete Clair quando ambos eram funcionários das Emissoras Associadas, iniciaram um namoro que em 1950 se tornou casamento – após Dias se separar da primeira esposa, Madalena – e durou até 1983, ano da morte de Janete. Eles tiveram quatro filhos – Guilherme, Alfredo, Denise e Marcos, este último falecido ainda criança.

Dias Gomes e Janete Clair
Dias Gomes e Janete Clair Divulgação

Após alguns anos dedicando-se ao trabalho em rádio, chegando inclusive a cargos de chefia, Dias escreveu o texto teatral que o tornaria respeitado e reconhecido inclusive fora do Brasil: O Pagador de Promessas, encenado pela primeira vez em 1960 com direção de Flávio Rangel no Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), em São Paulo, tendo Leonardo Villar no papel do crédulo Zé do Burro, que faz uma promessa a Iansã num terreiro de candomblé para que salve a vida de seu burro Nicolau e vai cumpri-la na Igreja de Santa Bárbara, que ele pensa equivaler a Iansã, o que gera a ira do padre Olavo, que se coloca terminantemente contra suas intenções. O texto foi transposto logo em seguida para o cinema por Anselmo Duarte, e o filme até hoje é o único brasileiro premiado com a Palma de Ouro no Festival de Cannes.

Leonardo Villar em O Pagador de Promessas
Leonardo Villar em O Pagador de Promessas Divulgação

A este seguiram-se outros textos de êxito, sempre numa linha de abordagem de assuntos importantes cuja discussão não interessava ao governo brasileiro de então – especialmente o militar, a partir de 1964, o que motivou muitos problemas de Dias com a Censura. A religião e sua influência sobre as massas, a corrupção e o mau-caratismo dos políticos, as mazelas sociais e seu impacto no comportamento do povo, tudo isso compôs a obra de Dias Gomes no teatro e foi levado pelo dramaturgo para seu trabalho na televisão, veículo no qual ele enxergou a possibilidade de levar sua mensagem a uma plateia muitas vezes maior do que a teatral, por maior que fosse seu sucesso, e de todos os estratos sociais – não apenas a pessoas de melhores condições financeiras e de instrução.

A estreia no gênero telenovela ocorreu em 1969, quando entrou na TV Globo para escrever A Ponte dos Suspiros, baseada no romance homônimo de Michel Zevaco, idealizada pela supervisora do departamento de novelas da emissora na ocasião, a cubana Glória Magadan. Passada em Veneza no ano de 1500, a história já estava com a produção iniciada, gastos altos haviam sido feitos, e Dias foi contratado com a missão de conduzir o trabalho – mas, diante da sua respeitabilidade como autor teatral, Boni disse que compreendia se ele quisesse assinar a novela com um pseudônimo. E assim foi: Walter Clark, o outro diretor da emissora, sugeriu Stela Calderón.

Carlos Alberto e Yoná Magalhães em A Ponte dos Suspiros
Carlos Alberto e Yoná Magalhães em A Ponte dos Suspiros Divulgação

Mas Dias disse a que veio e mesmo ao contar as agruras do romance de Rolando (Carlos Alberto) e Leonor (Yoná Magalhães) na Itália dos Médicis, Dias falou de problemas inerentes ao Brasil de então, e despertou a atenção da Censura. O horário da novela, que era apresentada às 19h, teve de ser mudado para as 22h, inaugurando uma faixa que acabou sendo destinada à experimentação, por seus menores riscos comerciais, e se consagrou apresentando algumas das melhores novelas da década – e da emissora – nos anos seguintes. Várias delas foram escritas por Dias Gomes, que se alternava com outros escritores de peso, especialmente Jorge Andrade e Walter George Durst.

Já na novela seguinte, em 1970, Dias mostrou a Bahia e seus costumes, alinhavados por uma trama de casais desfeitos, em Verão Vermelho, novela que marcou com Véu de Noiva, de Janete Clair, a renovação da teledramaturgia da Globo, levada a cabo por eles e pelo diretor Daniel Filho. Assim na Terra Como no Céu (1970/71) fazia um retrato da juventude carioca, ao mesmo tempo em que falava de Vítor Amadeu (Francisco Cuoco), um padre que resolve largar a batina para se casar com Nívea (Renata Sorrah), jovem que é assassinada misteriosamente. Vítor acaba se envolvendo com uma amiga de Nívea, Helô (Dina Sfat), filha do banqueiro Oliveira Ramos (Mário Lago).

Carlos Alberto e Yoná Magalhães em A Ponte dos Suspiros
Carlos Alberto e Yoná Magalhães em A Ponte dos Suspiros Divulgação

Após uma pausa de alguns meses, merecida após dois anos de trabalho sem folgas, Dias Gomes ousou uma vez mais ao ambientar uma novela no subúrbio carioca de Ramos, e tratar da disputa dos pontos de bicho por dois ases da atividade: Artur do Amor Divino, o Tucão (Paulo Gracindo), e Jovelino Sabonete (Felipe Carone). Bandeira 2 alcançou muito boa audiência e iniciou um novo ciclo na carreira de Paulo Gracindo.

Em 1973, o autor escreveu a primeira novela gravada em cores no Brasil, O Bem-amado, na qual mais uma vez Gracindo marcou época como Odorico Paraguaçu, prefeito de Sucupira, cidade onde ninguém morre, o que o impede de inaugurar o cemitério cuja construção o levara a ser eleito. O sucesso foi tão grande que a novela foi reprisada no mesmo horário das 22h em 1977 e deu origem a uma série que permaneceu mais cinco no ar, entre 1980 e 1984.

Nos anos 1970 Dias escreveu mais três novelas: O Espigão (1974), que tratou da especulação imobiliária e de ecologia; Saramandaia (1976), referência até hoje no tratamento de realismo fantástico pela teledramaturgia, regravada em 2013; e Sinal de Alerta (1978/79), com uma trama sobre poluição e seu impacto na vida das grandes cidades. Sempre antenado com as grandes questões de seu tempo e sempre inquieto para tratá-las através da dramaturgia.

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Na década de 1980, o dramaturgo começou a se dedicar mais a projetos de menor duração, como minisséries, e por algum tempo coordenou o interessante projeto da Casa de Criação Janete Clair, com a qual a Rede Globo pretendia desenvolver novos autores e formatos para suas produções e também prestar assessoria ao que estivesse no ar. Incompreendida por muitos, a Casa não prosperou. Em 1985, foi ao ar Roque Santeiro, após um impedimento de 10 anos. Os 50 primeiros capítulos, escritos por Dias na época, foram atualizados por Aguinaldo Silva, que conduziu a história por mais 111, quando Dias reassumiu a autoria. A história da cidade de Asa Branca, no Nordeste brasileiro, que vive à sombra do mito de Roque Santeiro (José Wilker), que se tornara santo ao morrer defendendo a cidade de um bando de ladrões, na verdade encobria uma teia de mentiras e interesses dos poderosos locais, especialmente Sinhozinho Malta (Lima Duarte) e sua amante Porcina (Regina Duarte), “viúva” de Roque.

Lima Duarte e Regina Duarte
Lima Duarte e Regina Duarte Divulgação

Mandala (1987/88) transpôs o mito grego de Édipo para a telenovela, com Marcílio Moraes na coautoria. Escrita com Lauro César Muniz e Ferreira Gullar, Araponga (1990/91) tinha como protagonista Aristênio Catanduva (Tarcísio Meira), um ex-agente do Serviço Nacional de Informações (SNI) de codinome Araponga que se dedicava a elucidar a morte de um senador, Petrônio Paranhos (Paulo Gracindo).

O Pagador de Promessas (1988), As Noivas de Copacabana (1992) e Decadência (1995) demonstraram no gênero minissérie que Dias não queria mais escrever novelas, mas nem por isso deixava de conduzir com a mesma competência de sempre suas histórias em capítulos, num formato de produções mais apuradas e que permitiam um aprimoramento maior. Desde adaptações de obras suas para teatro ou livros, até a ideia da história do assassino em série que estrangula mulheres vestidas de noiva, Donato (Miguel Falabella), Dias não deixava de lado sua atenção aos movimentos da sociedade brasileira. Em 1998 foi ao ar outra minissérie sua, Dona Flor e Seus Dois Maridos, baseada no original de seu conterrâneo Jorge Amado. Ainda, em 1995 conduziu a adaptação de Irmãos Coragem (1970/71), de Janete, para um remake que comemorou os 30 anos da Globo, e em 1996 sua minissérie O Fim do Mundo foi exibida às 20h30, em regime de novela.

Abaixo, uma edição do programa Roda Viva, da TV Cultura, que recebeu Dias Gomes em 1995. À parte as respostas e ideias contemporâneas do programa, como as relacionadas à minissérie Decadência, que estava em produção na ocasião, muito do que o dramaturgo declarou permanece atual e passível de reflexões.

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