Visões variadas

As novelas envelhecem mal, ou devem ser encaradas como frutos de seu tempo?

Reprises têm feito o público sentir mais as mudanças do decorrer do tempo nos últimos anos

Publicado em 02/09/2020

Com o advento do Canal Viva, o projeto de resgate de novelas clássicas do Globoplay e a própria presença de títulos um pouco mais antigos do que a média no Vale a Pena Ver de Novo nos últimos anos, uma frase se tornou frequente: “A novela envelheceu mal”.

Não raro, seu uso se dá quando a pessoa que comenta deseja qualificar uma produção como em desacordo com os valores morais de hoje, as demandas antes “inexistentes” que ganharam força neste século 21. O respeito às mulheres, à diversidade e à cor, por exemplo, são alguns dos temas que geram comentários nesse estilo.

Algumas reprises escaladas pelos canais do Grupo Globo para os próximos meses são exemplos de novelas que “envelheceram mal” segundo alguns espectadores.

Mais precisamente, duas de Manoel Carlos, Mulheres Apaixonadas (2003), no ar no Viva desde 24 de agosto, e Laços de Família (2000/01), que entra no Vale a Pena Ver de Novo no dia 7 de setembro e no Globoplay na semana seguinte.

A problemática da classe média alta do Rio de Janeiro – ou do Leblon, como queiram –, com discussões a respeito da instituição do casamento, das necessidades afetivas e sexuais das mulheres, dos sacrifícios que mães fazem ou deixam de fazer pelos filhos, temperada por bossa nova e ações ostensivas de merchandising social, desperta a nostalgia de uns e o desconforto de outros nos dias que correm.

Se para aquele começo dos anos 2000 Laços de Família e Mulheres Apaixonadas eram vistas como reflexos bastante fiéis da vida real, neste 2020 as duas novelas apresentam certo anacronismo diante dos fatos reais, que sempre suplantam a ficção.

Isso mesmo com a prática habitual do autor de se inspirar diretamente em fatos cotidianos para rechear os capítulos, motivando por isso a gravação de cenas horas antes de serem levadas ao ar. Todavia, esse mesmo anacronismo eventual compõe parte da força das reprises.

O Brasil de hoje, tão convulsionado politicamente – e não era mar de rosas na época, diga-se –, encontra em novelas como as de Manoel Carlos a nostalgia de um País que ainda tinha esperança e podia dar-se ao luxo de diariamente às 21h deleitar-se com essa classe média alta carioca e seus white people problems.

E por que o anacronismo, se existe, não é total? Porque os temas tratados pelas referidas novelas seguem atuais, algum talvez mais fortes ainda. Se a realidade descompromissada do cotidiano da maioria do público incomoda um pouco mais hoje do que em 2000 e tantos, a violência contra mulheres e idosos e a luta contra a homofobia, para citar apenas esses assuntos, seguem comuns em nosso noticiário.

Teórico da comunicação e da cultura de massa, Waldenyr Caldas escreveu nos anos 1980 para a Coleção Primeiros Passos (Editora Brasiliense) o volume O Que É Música Sertaneja. Ao introduzir o assunto de sua obra, ele diz algo que vale em muitos pontos para a telenovela – e para muitos produtos culturais, por extensão:

“Sempre classificada como produto cultural de baixa qualidade, ao contrário do que se possa pensar, seu público só tem aumentado no decorrer de todos esses anos. Parece que seus simpatizantes e consumidores ou não têm acesso ao trabalho dos críticos, ou, se têm, resolveram simplesmente ignorá-lo. Seja qual for a alternativa, a meu ver está de parabéns o público (…). Qualquer opinião classificando um produto de bom ou de ruim não é mais importante do que o prazer de desfrutá-lo. Mesmo porque este critério classificatório, ‘tal coisa é boa’, ‘tal coisa é de má qualidade’, muda de uma época para outra, de um crítico para outro e até mesmo entre os próprios consumidores. O que era bonito e agradável ontem pode ser visto como feio e desagradável hoje.” O inverso também vale, claro.

Provavelmente a grande maioria dos que dizem que uma novela “envelheceu mal” não o fazem por mal, digamos. Eles se referem justamente à abordagem de determinados temas que aos olhos de hoje não pega nada bem, mas passava por normal e aceitável à época da exibição original.

No entanto, à parte características técnicas, que realmente ficam ultrapassadas e cada vez mais depressa, as histórias em si, seus personagens e os acontecimentos dos enredos pedem um pouco de condescendência de quem assiste.

O mesmo vale para o “ritmo” das produções, com cenas mais longas e “arrastadas” quanto mais antigas sejam as novelas, em geral. Já que feitas para seu tempo, as novelas são pensadas, executadas e recebidas dentro de uma realidade que se transforma.

Os anos 1970 e 1980, e mesmo 1990, não tinham no dia a dia o frenesi tecnológico de agora. O ideal é acompanharmos conteúdos antigos percebendo a melhora que haja e não os defeitos – ou não somente estes, já que com os erros e defeitos podemos aprender e também ver como evoluímos nisto ou naquilo, quem sabe.

*As informações e opiniões expressas nessa crítica são de total responsabilidade de seu autor e podem ou não refletir a opinião deste veículo.

© 2024 Observatório da TV | Powered by Grupo Observatório
Site parceiro UOL
Publicidade