‘Grande Sertão’, leitura de Guel Arraes para o clássico de Guimarães Rosa, vale ser visto

Publicado em 08/06/2024

Ainda me lembro do arragalar de olhos que me consumiu quando, em 2019, Guel Arraes contou a mim e a Mauricio Stycer, nos bastidores da CCXP, que faria um filme sobre “Grande Sertão: Veredas”, em parceria com Jorge Furtado. A ideia seria trocar os jagunços do século 19 pelos soldados do tráfico de drogas que dominam as favelas no mundo contemporâneo.

As facções no espaço dos bandos.

A contemporaneidade urbana dos conflitos do sertão.

Como bem diz Riobaldo, figura central daquela que é tratada por muita gente mais erudita que eu como a maior obra da literatura brasileira, “o que ela [vida] quer da gente é coragem”. Naquele instante, pensei exatramente isso: que genialidade conduzir esse enredo aos dias de hoje, mas, caramba, que coragem é levar Riobaldo às telas. Sempre que revisito as páginas originais de Guimarães Rosa eu me pergunto como traduzir aquilo para outros idiomas e formas de narrativa, seja teatro, cinema ou TV.

Outras incursões já foram feitas nesse terreno e, em certa medida, muito bem-sucedidas, a começar pela minissérie adaptada pelos Walters Avancini e George Durst para a Globo, com Tony Ramos e Bruna Lombardi como Riobaldo e Diadorim, respectivamente. Certamente, pelo alcance que a Globo tinha em 1985, maior que hoje, vem da ocasião a maior difusão da obra. Sua leitura, como sabemos, exige concentração e foco, sem falar no ouvido do leitor para assimilar a prosódia de Riobado, narrador do enredo. “Viver é muito perigoso”, digo sempre, pautada por ele.

Há pouco mais de um mês, tive a oportunidade de assistir enfim ao filme cujo projeto conheço há mais de quatro anos e que estreou esta semana. Na sessão de première estavam também o próprio Guel e o amigo Stycer, além de Eduardo Sterblicht, destaque no elenco, que adentrou a sala do Cine Marquise, no Conjunto Nacional, já com as luzes da sala apagadas.

Digo aqui o que tenho dito a quem me pergunta sobre o longa: “que tal?”

Não é uma obra que absorve o espectador por completo, como aquelas em que você, na cadeira do cinema, esquece a sua vida e os seus problemas para se ocupar do enredo exposto na tela. Mas não se abandona a sala sozinho. O espectador deixa o recinto com aquelas figuras em mente e com a voz de alguns personagens ainda a ecoar na cabeça. É uma construção interessante, intensa, bem edificada e, principalmente, muito válida de ser apreciada na tela grande, porque cumpre a função de afetar o espectador. Não se sai indiferente do cinema.

Mais que tudo, é um trabalho feito para ator brilhar. E enaltece, sem acanhamento, a linguagem teatral, tantas vezes posicionada na contramão do audiovisual. A câmera sublinha o exagero, o expandir de braços – como na sequência protagonizada por Mariana Nunes, mãe da garotinha morta por bala perdida. O ouro perseguido pelo bando de Joca Ramiro nas linhas originais agora é o pó branco, e este mesmo Joca Ramiro toma forma de Rodrigo Lombardi – viril, líder da facção, tatuado e estilizado, um bandido gato, diríamos.

A analogia que troca ouro por pó branco me remete à série “Cidade dos Homens”, quando Acerola (Douglas Silva) explica, em sala de aula, a trajetória de Napoleão Bonaparte como se fosse a guerra do morro que habita no Rio de Janeiro.

A favela de Guel e Furtado não está localizada no Rio, em São Paulo, Salvador ou Recife. Nesse ponto, a disputa de facções converge para o mesmo drama: onde o poder público falha, o poder paralelo se estabelece, seja onde e quando for. Assim era com os jagunços, assim é com os chefes do PCC, Comando Vermelho e afins.

Frases inteiras estão salpicadas pelo roteiro, e seria mesmo um desperdício deixá-las presas às páginas do livro. Uma delas, dita por Lombardi/Joca Ramiro, está parcialmente sugerida na abertura deste texto: “A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta. O que ela quera ada gente é coragem.”

Também nesse aspecto, devo citar outra referência para mim – “Capitu”, adaptação de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis, em que o diretor Luiz Fernando Carvalho constrói toda uma narrativa visual de criação própria, sem deixar de se apoiar no texto de Machado, em sua íntegra, sem que este seja subserviente ou subordinado ao acabemento visual. Que delícia é encontrar releituras assim, em que o texto é respeitado e replicado dentro de uma estrutura toda repaginada.

Mas, para além de todos as escolhas de Guel e Furtado, o que impressiona o espectador que já conhece “Grande Sertão” é a performance dos atores em cena, com Caio Blat brilhando no topo do topo de tudo. Quando digo que o filme não rouba a alma do espectador, devo fazer essa ressalva: a não ser por Caio, nosso Riobaldo, visto em dois tempos – o da ocorrência dos fatos narrados e o do tempo da narração, mais velho, relembrando seu passado e a incômoda paixão por Diadorim. Quanto êxito há no timbre de voz, no olhar e na comoção.

Luiz Miranda, como o chefe da polícia, também surpreende, principalmente por não ser normalmente visto em papel dramático. E Sterblicht, igualmente impressionante, não merece menos aplausos, mas, observe-se, está apoiado em bons recursos de make up, o que torna sua performance mais “fácil”.

A sinopse reza que “numa grande comunidade da periferia brasileira chamada ‘Grande Sertão’, a luta entre policiais e bandidos assume ares de guerra e traz à tona questões como lealdade e traição, vida e morte, amor e coragem, Deus e o diabo. Riobaldo entra para o crime por amor a Diadorim, um dos bandidos, mas nunca tem a coragem de revelar sua paixão.”

Nosso(a) Diadorim vem agora em pele de Luísa Arraes, atriz de tantas nuances. Para quem, como eu, viu Bruna Lombardi como tal, e Tony Ramos como Riobaldo, é impossível não traçar paralelos, ainda que a proposta do filme seja bem outra. Se Bruna pendia para um esforço de masculinização, de tão forte que é sua gênese feminina, Luísa por vezes se confunde com um garoto efeminado, e não como uma mocinha masculinizada. Mas aí está uma performance que também se conecta à contemporaneidade, que nos permite conhecer e apreciar tantos desdobramentos entre o que se convenciou chamar de masculino ou feminino.

Vá ao cinema.

Aprecie a direção de atores, primorosa.

E leia o livro. Riobaldo sabe tudo. E nesse sentido, não haveria profissão mais adequada para encontrá-lo nessa releitura do que um professor.