Nos 130 anos da Abolição da Escravatura, relembre momentos em que a representatividade negra esteve em voga nas novelas

Publicado em 13/05/2018

Há exatos 130 anos, a Princesa Isabel, então exercendo a regência no governo imperial do Brasil, durante ausência de seu pai, o Imperador D. Pedro II, assinou a Lei Áurea, que aboliu a escravidão em nosso País, ou seja, libertou todos os que eram mantidos cativos por senhores que os haviam comprado ou adquirido por outros meios, como se mercadorias fossem. O dia 13 de maio de 1888 ficou em nossa História, mas mesmo passado mais de um século os negros ainda lutam todos os dias por seu lugar de direito numa sociedade que os humilha e oprime das mais variadas formas.

Antes da estreia, a nova novela das 21h da Rede Globo, Segundo Sol, de João Emanuel Carneiro, já se vê envolvida numa grande polêmica em torno da discrepância entre a Bahia mostrada pela novela, preponderantemente branca, contra a realidade inegável da maioria da população baiana (e brasileira) ser negra. Para interpretar um cantor de axé que se vê fazendo mais sucesso após ser dado como morto, embora esteja vivo, e que por isso é enredado numa trama que o convence de que manter a farsa é melhor, a emissora escalou um ator branco, Emilio Dantas – vindo do grande sucesso como o Rubinho de A Força do Querer, de Gloria Perez, no ano passado. Sua noiva ambiciosa, que concorda com a mentira, é também branca, Deborah Secco. A baiana lutadora, mãe de dois filhos, com quem o artista se envolve ao se refugiar num lugarejo distante, é também branca: Giovanna Antonelli. Uma ardilosa vilã que manipula a noiva é branca, Adriana Esteves. O irmão aproveitador de Beto é branco, Vladimir Brichta. Há atores negros na novela, é verdade, e um deles interpreta papel de importância: Fabricio Boliveira. Mas a questão é essa grande Bahia branca, embranquecida, clareada. Mesmo antes da estreia e à parte toda a história planejada para exibição, pegou mal. O Ministério Público chegou a acionar a Globo para que sejam tomadas providências que resolvam a questão, e os próprios atores da novela se reuniram com a emissora para discutir o assunto – e, é bom que se diga, não se deve voltar contra eles uma contestação acerca da escalação do elenco que eles mesmos compõem, uma vez que são funcionários da emissora, escolhidos para os trabalhos, e não o inverso.

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Mas não foi a primeira vez que a representatividade do negro na teledramaturgia chamou a atenção, pela sua quase ausência ou abordagem equivocada. Há um livro e um documentário de Joel Zito Araújo só sobre esse assunto, a presença do negro na telenovela brasileira, chamados ambos não por acaso A Negação do Brasil. Para quem quiser assisti-lo:

Talvez a manifestação contrária à falta de representatividade negra na teledramaturgia seja a liderada pela coluna de Plínio Marcos no jornal Última Hora, em 1969, contra a escalação de Sérgio Cardoso, ator branco, para interpretar o papel principal da novela A Cabana do Pai Tomás, produzida pela Globo, adaptação do famoso romance de Harriet Beecher Stowe feita inicialmente por Hedy Maia. Plínio também era branco, mas nem por isso deixou de expressar sua contrariedade ao fato de escalarem Sérgio para viver um papel que necessariamente deveria ser de um ator negro, evitando assim o expediente de ter que pintar Sérgio de preto e colocar rolhas em suas narinas para que elas ficassem mais largas por algumas horas de gravações. O absurdo aumenta sabemos que Sérgio interpretava outros dois personagens na história, logo Pai Tomás poderia muito bem ser vivido por um negro.

Sérgio Cardoso em A Cabana do Pai Tomás
Sérgio Cardoso em A Cabana do Pai Tomás Reprodução

Em 1975, Milton Gonçalves pediu a Janete Clair que lhe desse um papel em que usasse terno e gravata, e assim foi: em Pecado Capital, primeira novela das 20h em cores da Globo, ele deu vida ao psiquiatra Percival, muito respeitado em sua área de atuação, que tratava do caso da jovem Vilminha (Débora Duarte), vítima de um trauma de infância. É importante destacar que não se trata de um simples “favor” da novelista ao ator, mas de um destaque necessário a um intérprete negro num bom papel numa época em que de forma geral os atores negros viviam apenas escravos, serviçais e bandidos.

https://www.youtube.com/watch?v=6Ll73NBgUv8

Na novela Corpo a Corpo (1984/85), de Gilberto Braga, houve grandes reações ao romance inter-racial entre o branco Cláudio (Marcos Paulo) e a negra Sônia (Zezé Motta), totalmente desaprovado pelo pai do rapaz, Alfredo Fraga Dantas (Hugo Carvana). Lúcia (Joana Fomm), que detestava Sônia por ela, sendo negra, ter atrapalhado seus planos de casar Cláudio com sua filha Alice (Luiza Tomé), chamava a personagem por termos como “macaca”. Segundo Zezé Motta, em depoimento a Joel Zito Araújo no documentário citado acima, Marcos Paulo chegou a receber cartas nas quais era questionado a respeito de estar ganhando tão mal que precisasse chegar ao ponto de ter que beijar e fazer cenas românticas com uma negra.

Em 1995, Silvio de Abreu criou em sua novela A Próxima Vítima uma família negra, os Noronha – Cléber (Antonio Pitanga) e Fátima (Zezé Motta), os pais; Sidney (Norton Nascimento), Jefferson (Lui Mendes) e Patrícia (Camila Pitanga), os filhos; a empregada Marizete (Catarina Abdalla), que era branca. Seu objetivo era mostrá-los como pessoas normais que eram e que todos os negros são, com problemas e alegrias comuns a qualquer pessoa. Mas foi acusado de mostrar uma família que não existia de verdade, imaginem. Felizmente não se andou para trás na construção desse núcleo, sendo dele inclusive um dos personagens que estavam na importante lista do horóscopo chinês que indicavam as vítimas do assassino misterioso: Cléber, que a certa altura da história é morto ao ser atirado no poço do elevador do prédio em que morava.

Porto dos Milagres (2001), de Aguinaldo Silva e Ricardo Linhares com base em Jorge Amado, causou alguma celeuma junto ao movimento negro, já que era um contrassenso – a exemplo do que se repete agora em Segundo Sol – que uma história passada na Bahia tivesse tão poucos atores negros em seu elenco.

Marcos Palmeira e Camila Pitanga em Porto dos Milagres
Marcos Palmeira e Camila Pitanga em Porto dos Milagres Divulgação

Evidente que essa não é uma lista completa das novelas que tiveram algum problema ou “ruído” na representatividade negra entre seus personagens e tramas; a intenção é demonstrar como essa é uma questão bastante antiga, como o é na sociedade brasileira. Às portas da terceira década do século 21, é lamentável que não seja natural a representação de diversos estratos da nossa sociedade e da composição da nossa população num produto de tão vasto alcance como a telenovela. A discussão é necessária uma vez mais, para que outras determinações que não as comerciais, de faturamento e audiência ditem escolhas aparentemente tão simples quanto o elenco uma novela passada na Bahia.

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