O Salvador da Pátria: 30 anos da novela que elegeria o presidente

Publicado em 09/01/2019

Em 9 de janeiro de 1989, a Rede Globo lançou em seu horário nobre a novela O Salvador da Pátria. O autor Lauro César Muniz tinha pela frente o desafio de manter a boa audiência de Vale Tudo, a atração antecessora. Além do grande sucesso, o desfecho atraiu grande atenção com a revelação do mistério em torno de quem havia matado a vilã Odete Roitman, vivida por Beatriz Segall. Para tanto, Lauro recorreu a uma ideia antiga sua, que originou um programa do ciclo Caso Especial em 1974: O Crime do Zé Bigorna.

Alguns autores da teledramaturgia que andam fazendo falta na TV

A trama de O Salvador da Pátria

A história se passa entre os municípios fictícios de Tangará e Ouro Verde, interior de São Paulo. Salvador da Silva, o Sassá Mutema (Lima Duarte), trabalha como boia-fria nos laranjais da região. De meia-idade, ingênuo, analfabeto e humilde, Sassá é a figura perfeita para livrar de problemas seu patrão, o fazendeiro e político Severo Toledo Blanco (Francisco Cuoco). Este se diverte com a jovem Marlene (Tássia Camargo), mas o caso extraconjugal pode arruinar sua carreira política.

Francisco Cuoco e Susana Vieira como Severo e Gilda em O Salvador da Pátria (Divulgação/TV Globo)
Francisco Cuoco e Susana Vieira como Severo e Gilda em O Salvador da Pátria DivulgaçãoTV Globo

Assim, com a pressão fomentada pelo discurso feroz de Juca Pirama (Luís Gustavo), inescrupuloso radialista que brada nos microfones contra Severo, ele decide casar Marlene e Sassá. Livra-se assim de obrigações para com ela, afasta de si as suspeitas públicas e pode ainda divertir-se com a moça de vez em quando. Tudo com as bênçãos de sua esposa Gilda (Susana Vieira).

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No entanto, Sassá tem seus próprios planos. Embora se case com Marlene, ele se apaixona por Clotilde Ribeiro (Maitê Proença). Trata-se da bela professora contratada para dar aulas aos adultos na fazenda de Seu Quinzote (Mário Lago). Antigo prefeito de Tangará e outrora rico e poderoso, hoje ele vive falido e senil. Sassá fica fascinado por Clotilde, mas seu casamento com Marlene configura um empecilho à eventual concretização de algo. Para piorar, Marlene e Juca Pirama aparecem mortos no chão da sala de sua casa. Assassinados supostamente em cenas de amor. Logo, Sassá é visto como o maior suspeito, um marido ultrajado em busca de vingança.

Uma reviravolta transforma a vida de Sassá

Sassá acaba no meio de um turbilhão popular que defende sua soltura, já que ele os teria matado em virtude de adultério. O advogado Cássio Marins (Thales Pan Chacon) se propõe a defendê-lo. Logo também vem à tona que Juca Pirama, conservador, moralista, íntegro, era na verdade integrante de uma quadrilha de tráfico internacional de drogas. Sassá é inocente, mas convém dizer que é culpado, perante a população, e ele é convencido disso. Os políticos locais passam a ver em Sassá uma figura viável para a prefeitura de Tangará. E os criminosos veem nele o prefeito ideal para favorecer a cidade como rota do tráfico.

Mas ele se projeta por si, apesar das iniciativas de cooptação de diversas vertentes. Especialmente do próprio Severo e de Marina Sintra (Betty Faria), outra grande fazendeira. Enquanto conspira para viabilizar seus planos de ascensão, Severo leva a cabo um romance com a bela Bárbara (Lúcia Veríssimo). Neta do grande banqueiro Hermínio (Benjamin Cattan), ela é recém-chegada da Europa e o romance corre em sigilo. Mas não para Gilda, claro, que inclusive se incomoda com a perspectiva de enfim poder vir a ser trocada.

João, Sassá e a organização criminosa

Betty Faria e José Wilker como Marina e João em O Salvador da Pátria (Bazilio Calazans/TV Globo)
Betty Faria e José Wilker como Marina e João em O Salvador da Pátria Bazilio CalazansTV Globo

Junto a esses acontecimentos surge João Mattos (José Wilker). Irmão de Juca, ele trabalha como piloto de avião. É casado com Ângela (Lucinha Lins) e pai da graciosa Regina (Natália Lage). João acaba preso ao ser envolvido por Juca numa operação de tráfico de cocaína, numa carga que supostamente era de equipamentos eletrônicos para a rádio. No entanto, ele foge da cadeia, ajudado pela organização, e assume nova identidade: Miro Ferraz. Vai para Tangará, assume a rádio e se envolve com a viúva Marina, ante a rejeição de Ângela. Esta acredita que ele sabia bem o que levava na carga e demora a se convencer do inverso.

João e Marina vivem um romance complicado, especialmente pela relação dele com a organização, cujo líder esconde-se atrás de um grande mistério. No decorrer da história, Juca Pirama, supostamente vivo, volta a assombrar os poderosos locais por meio de uma rádio pirata. Os interessados no esclarecimento da história se lançam a investigar se o radialista está vivo, e quem estaria por trás de seu retorno. “Juca Pirama” passa a ser o nome pelo qual o oculto líder da organização criminosa é nomeado.

Uma pedra no sapato de Sassá e outros romances da história

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Enquanto isso, Sassá segue em sua trajetória “do nada ao entendimento”. Alfabetiza-se, adquire mais conhecimentos e elege-se prefeito. Conquista a “professorinha”, mas posteriormente uma nova dificuldade se interpõe entre eles. Ricardo (Gracindo Júnior), o marido que Clotilde havia abandonado, aparece em Tangará. Os personagens jovens também vão se entrelaçando amorosamente. Camila (Mayara Magri) é a mais importante deles. Filha mais velha de Marina, a jovem foi preterida por Sérgio (Maurício Mattar), filho de Severo e Gilda, em favor de Sílvia (Alexandra Marzo), com quem se casou. Camila é um pouco desajustada e pula de romance em romance, sem deixar de amar Sérgio. No início envolve-se com Juca Pirama, o que provoca a ira de sua mãe e a torna suspeita de tê-lo assassinado.

Por que o título “O Salvador da Pátria”?

Sassá Mutema ser um indivíduo manipulável, egresso da classe trabalhadora, foi condenado pela esquerda, uma vez que o personagem foi identificado com o líder do Partido dos Trabalhadores, Luiz Inácio Lula da Silva. Este inclusive era candidato a presidente naquele ano pela primeira vez. A direita, por sua vez, também por identificar Sassá com Lula e o PT, não aprovava que o personagem ascendesse, ou se redimisse diante das atitudes ligadas ao narcotráfico.

O teor político de O Salvador da Pátria se justifica com a preocupação de Lauro César Muniz em escrever uma novela que espelhasse o momento político então atravessado pelo País. Desde 1960 o povo não votava para presidente, e em 1989 isso voltaria a acontecer. Sua intenção era fazer Sassá Mutema se eleger presidente no desfecho da história. Seria o “salvador da pátria” ao qual o título alude – e que o povo insiste em buscar e se enganar, sem encontrar. Todavia, isso foi impossibilitado por uma série de pressões sobre a emissora, que nem o próprio autor sabe dizer de onde vieram. Lauro chegou a ouvir pelos bastidores coisas como “o autor dessa novela vai eleger o próximo presidente da República”.

A resolução dos mistérios do duplo assassinato e da chefia da organização

Assim, Sassá não passou de prefeito. Mas mesmo assim colaborou decisivamente para desbaratar a organização criminosa. Aliás, esse pode ter sido um dos fatores da mudança de rumos. Não seria desejável apresentar, na novela das 20h (hoje 21h), um presidente eleito que tivesse ligações com interesses do tráfico de drogas. No exterior, a novela ganhou o título Sassá Mutema, que provavelmente seria usado por aqui também, não fossem as circunstâncias e intenções do momento. A propósito, Bárbara, rica, linda e jovem, era a chefe da organização criminosa, e acaba presa no final da novela. Juca Pirama realmente estava morto, e sua voz ressurgiu em virtude do uso de gravações antigas e de um imitador. O assassino do radialista e de Marlene foi Jaime (Valter Santos), policial e integrante da quadrilha. Juca sabia demais e quis alçar seus próprios voos, atrapalhando os planos de Bárbara.

Destaques do elenco e alguns problemas de O Salvador da Pátria

Lima Duarte teve mais um grande momento na carreira com este que tem entre seus personagens preferidos. Maitê Proença defendeu bem a professora Clotilde. Francisco Cuoco também apresentou um bom trabalho na pele de Severo, que não valia a comida que comia. Fez boas dobradinhas com Susana Vieira e Lúcia Veríssimo. Betty Faria esteve bastante correta, mas a própria atriz reconheceu posteriormente que não deu o melhor de si ao viver Marina.

Além das questões políticas que permearam a narrativa e geraram manifestações, o grande número de personagens tumultuou um pouco O Salvador da Pátria. Não foi segredo a insatisfação, por exemplo, de Cláudio Cavalcanti e Marcos Paulo, que pediram para deixar a novela. O primeiro era Eduardo, fantasma do passado oculto de Marina, ao passo que o segundo era Paulo, engenheiro que se envolveu com algumas personagens, entre as quais Camila e Ângela.

Destaques da trilha sonora de O Salvador da Pátria

Já no tema de abertura, composto e interpretado por Gilberto Gil, a mensagem geral da novela. “Amarra o Teu Arado a Uma Estrela” ilustrava a caminhada do humilde Sassá, dos campos ao Planalto e, depois, ao Universo sem fronteiras. “Se os campos cultivados nesse mundo/São duros demais/E os solos assolados pela guerra/Não produzem a paz/Amarra o teu arado a uma estrela/E aí tu serás/O lavrador louco dos astros/O camponês solto nos céus/E quanto mais longe da Terra/Tanto mais longe de Deus”. Uma das mais inspiradas aberturas de Hans Donner.

“Bem que se Quis”, com Marisa Monte, consagrou a cantora e foi uma das músicas mais tocadas da época. Era tema de Severo e Bárbara, a saber. “Tá na Terra”, com João Caetano, era tema dos boias-frias, como Bodão (Lutero Luiz). Sassá e Clotilde tinham seu romance embalado pela bela “Lua e Flor”, na voz de Oswaldo Montenegro. “Eu amava como amava um pescador/Que se encanta mais com a rede que com o mar…”.

“O Tempo Não Para” surgia na gravação de Simone, como tema do poderio econômico de Severo. “Deus te Proteja de Mim”, com Wando, sonorizava as cenas de amor de Marina e João. O conjunto A Cor do Som estava presente com a bela “Horizontes”, tema de João em sua busca por justiça. Além disso, O Salvador da Pátria foi a primeira novela a ter sua trilha lançada em CD. As músicas internacionais da trama inauguraram o formato.

Mudanças recentes descaracterizam canal Viva

A reprise de O Salvador da Pátria, novamente em ano de eleições

Até hoje, O Salvador da Pátria teve apenas uma reprise, em 1998. Curiosamente, outro ano de eleições presidenciais com Lula entre os candidatos… A novela fez grande sucesso na época, inclusive superando os índices de Vale Tudo, atualmente em reprise no Viva. Aliás, nesses 30 anos que se completam, O Salvador da Pátria seria uma pedida muito melhor para o canal do que qualquer uma das três próximas novelas, já anunciadas, com estreia prevista para este trimestre…

O Brasil mudou muito em alguns aspectos e permanece o mesmo, senão pior, em outros. A crítica de Lauro César Muniz segue atual e merece ser descoberta e exaltada.

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