Reportagem de Domingo: Ministério Público x Telegames na TV

Publicado em 03/12/2017

No dia 30 de abril de 1946, o decreto-lei nº 9215, assinado pelo então presidente Eurico Gaspar Dutra, proibia a exploração de jogos de azar no Brasil. A desculpa de Dutra, à época, era a de que os jogos de azar eram degradantes para o ser humano e que a indústria desses jogos explorava, financeiramente, tudo o que era possível do participante.

Nos anos 80 e 90, o Tele900 também causou polêmica, assim como a proibição que citamos acima. Oferecendo todos os serviços que se pode imaginar – e não imaginar também – e sorteios para telespectadores em programas populares, como Raul Gil e Ratinho, o 0900 foi extinto por pedido do Ministério Público.

A alegação? Inúmeras reclamações de consumidores que se sentiam lesados com os serviços, como tele-emprego, que prometia um emprego para o cidadão que ligasse, e o tele-sexo, no qual até menores poderiam ligar e ouvir uma moça provocando e fazendo gemidos, como se realmente estivesse numa relação sexual com a outra pessoa na linha.

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Contamos essas histórias acima para falar sobre os telegames da televisão. Basicamente, o Ministério Público encara esse tipo de programa como um misto de 0900 com exploração de jogos de azar. Claro, de uma forma diferente e escondida, mas a cruzada para o fim desta prática, que está sendo feita pelo órgão público em todo o Brasil, é praticamente igual.

Nunca na história da televisão brasileira se viu algo do gênero. Só entre os anos de 2016 e 2017, ações contra os telegames foram ajuizadas nos Ministérios Públicos de Sergipe, Rio Grande do Sul, São Paulo, Rio de Janeiro, Paraná, Maranhão e Piauí. A grande maioria abriu um Inquérito Civil para investigar tais irregularidades da atração. Boa parte delas ainda corre na Justiça.

Como começou os callTV
O CallTV não é uma exclusividade da TV brasileira. Longe disso, aliás. Em países como Índia, Argentina e Espanha, esse tipo de programa é bastante popular – e rentável. O formato é aquele que você já conhece: apresentadores jovens, bonitos e falantes lançam um desafio, normalmente bem fácil, e pedem para você ligar para o telefone na tela.

A maioria desses telefones usa o 091 como a operadora. E aí é que começa o grande pulo do gato. A 091 é o número da IPCorp, uma empresa obscura que não faz propaganda e só costuma aparecer para o grande público nesses telegames. O seu telefonema custa muito acima do valor praticado, cerca de R$ 4 por minuto.

Gabi Serafim já fez vários programas do gênero como Hyper QI e Qual é o Desafio ReproduçãoRedeTV

O curioso é que o regulamento, tanto do Top Game, tanto do Super Bônus, hoje exibidos pela Band às 1h e às 15h, respectivamente, dizem que “para participar, os telespectadores devem ligar através do telefone divulgado na tela do seu televisor, ou seja, efetuar uma ligação para um telefone fixo para cidade de Chapecó/Santa Catarina, podendo para tanto utilizar qualquer operadora de longa distância”. Ou seja, você pode ligar de outra operadora, mas é induzido ao erro pela própria atração, já que, notoriamente, é vista uma parceria.

O primeiro registro desse tipo de atração no Brasil data de 2006, com o Insomnia, da RedeTV!. Tendo vários apresentadores, inclusive Jackeline Petkovic, conhecida do grande público por ter tido destaque no SBT, a atração popularizou esse tipo de formato no país e ficou pouco mais de um ano no ar. Curiosamente, não se teve nenhuma denúncia contra ele registrada. Mas os problemas viriam depois.

Jackeline Petkovic apresentou programas como A Chance e Insomnia Reprodução

O começo da cruzada
Em 2008, a Action Media, empresa que pertence a Endemol, a mesma que é dona do formato do Big Brother, começou a produzir o Game Play. O callTV da vez tinha apresentação de Gabi Serafim – vamos falar dela já, já – e prometia o mesmo que o Insomnia, com a diferença de que o 091 já estava lá e as reclamações explodiram.

As pessoas se diziam lesadas por ter de ficar uma hora no telefone e não conseguirem entrar no ar. E quem conseguia tinha dificuldades de pegar o prêmio, por conta de complicações com a entrega de documentação.

Não deu outra. Em 2008, o MPF/SP recomendou que a RedeTV!, que exibia o Game Play, retirasse o programa do ar. “O jogo ‘GamePlay’ ignora a figura do telespectador e centraliza-se na do apostador ou participante. A finalidade do serviço público de telefonia não pode ser desviada para fazer cobrança no interesse de promotora de jogo de azar”, explicou o procurador da República Márcio Schusterschitz da Silva Araújo, autor desta recomendação.

Depois disso, os tais telegames ficaram restritos a emissoras menores, como Rede Brasl e CNT, e perderam um pouco de força. Mas elas ressurgiram em 2015 em grandes redes, graças a produtoras como a G2PTV Produções e Eventos e a Avatar Mobile Technologies, produtoras do Top Game e do Super Bônus, hoje exibidos por RedeTV! e Band.

O formato novamente é o mesmo, com bonitões sarados – alguns inclusive já até posaram nus ou nuas – prometendo prêmios em dinheiro. Só que agora a produção está mais caprichada do que era antigamente e o ar tenta ser um pouco mais sério. Tenta, porque a estrela desse tipo de atração ainda continua firme e forte.

Gabi Serafim tem 14 mil seguidores nas redes sociais. Bem pouco, mas quem zapeia nesse tipo de programa sabe que ela é figurinha carimbada. Já apresentou inúmeras atrações neste formato e tem um estilo conhecido: caretas, exageros, “brigas” com o diretor do programa e até mesmo pedido de mais dinheiro. Ela quer ser amiga do “participante” e sua capacidade de tentar manter aquela pessoa na linha impressiona até os mais leigos no assunto.

Curiosamente, o seu jeito de apresentar chamou a atenção de José Luiz Datena recentemente. Em outubro, ao ver o Super Bônus com Gabi Serafim, Datena ficou incrédulo e foi sincero. “Isso é uma piada”, afirmou o apresentador do Brasil Urgente, da Band.

As supostas ilegalidades
Analisando o regulamento de todos os dois programas, é possível ver uma primeira suposta ilegalidade: a falta de uma chancela da Caixa Econômica Federal. No Brasil, todo sorteio, premiação ou concurso cultural público deve ter a autorização da Caixa para ser realizado, principalmente um deste tipo. Os programas se intitulam concursos culturais e, nesse modo, a Caixa cobra, 40 dias antes do início dele, uma taxa de fiscalização mediante o tamanho do prêmio que será distribuído.

O problema é que o regulamento não deixa claro se existe qualquer tipo de tratamento igualitário para todos os concorrentes e, só por isso, a Caixa já poderia não autorizar tal concurso. Tentamos entrar em contato com a assessoria de comunicação da Caixa para perguntar se existe essa chancela, por telefone, mas eles não foram atendidos até o fechamento desta matéria.

O ponto mais polêmico é justamente o lado do usuário. A reportagem ligou para o programa Super Bônus, exibido pela Band, às 15h, na última sexta-feira (1). A nossa ligação durou exatos 11 minutos e 33 segundos. No primeiro minuto e meio – e nessa brincadeira já foram 4 reais e alguns centavos… – é dada orientações ao tal jogador. Depois, várias perguntas extremamente fáceis são feitas. A que mais chamou a atenção foi: “O mar é azul. Verdadeiro ou falso?”.

No regulamento da atração, é prometido que o participante que fizer mais pontos é colocado no ar para tentar ganhar o prêmio. Mas, nos quase 12 minutos em que ficamos na linha, não é possível saber qual a sua posição. Por não deixar claro, como é possível garantir que entrarei no ar? Não se sabe, já que não existe qualquer atualização de posição do atual cobrador, nem mesmo no site das produtoras, sobre isso.

Tentamos falar com a Avatar e a G2PTV por telefone, disponibilizado em seus sites oficiais, mas ninguém responsável foi achado para falar sobre o assunto.

Jeito teatral e diferente de Gabi Serafim apresentar programas chamou atenção de Datena da Band ReproduçãoBand

As denúncias e a cruzada do Ministério Público
Não é difícil achar reclamações contra esse tipo de programa. O mais notório é o valor da conta telefônica, que vem cara. “Ficamos mais de 20 minutos na linha respondendo abobrinhas para uma mensagem eletrônica e não nos passaram a ligação, a resposta é beija-flor. Vamos em busca de nosso direito no Poder Judiciário. Meus filhos ficaram muito frustrados com o episódio”, afirmou um cidadão no Reclame Aqui, site conhecido por receber reclamações de consumidores.

“Meu pai é um senhor de 75 anos e ligou para participar. Em duas das ligações, ficou na linha por mais de 30 minutos. Agora, estou com uma conta de R$ 632,45. Estou abismada!”, afirma outra senhora no mesmo site, numa mensagem que tocou os telespectadores.

Aliás, numa rápida pesquisa, é possível notar que existem mais de 2 mil reclamações para atrações desse tipo. O problema é que, por desconhecimento certamente, as pessoas reclamam com a Band ou com a RedeTV!, e não exatamente com a produtora. Mas, por exibi-las, as redes podem, sim, sofrer sanções do Judiciário. Das mensagens vistas pela reportagem, nenhuma foi respondida pela emissora ou por produtores do programa.

Em 2012, por exemplo, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul deu ganho de causa para um senhor que processou o Grupo Bandeirantes, que exibia tal programa no Terra Viva, emissora dedicada ao público rural. O homem venceu a ação, ganhando R$ 5 mil de dano morais, além de outros R$ 5 mil referentes ao prêmio que era disputado, além de o dobro da conta telefônica que veio na época, no valor de R$ 254,86.

Por conta desta falta de transparência do seu modus operandi, o Ministério Público de vários estados está com inquéritos contra esse tipo de programa, que tem ganhado espaço em emissoras locais pelo Brasil, afetadas pela crise econômica. No ano passado, a G2P pagou cerca de 200 mil reais para comprar horário na TV Atalaia, afiliada da Record em Sergipe, na faixa das 14 horas, destinada a produções próprias.

Mesmo ficando apenas um mês no ar, o Ministério Público de Sergipe abriu um inquérito para investigar “eventuais problemas na transmissão do programa denominado Top Game”, depois de oito denúncias feitas para o Procon, se baseando no código de defesa do consumidor – as pessoas alegavam na denúncia que tinham ganhado o prêmio, mas não conseguiram retirar.

Outro processo que ainda está sendo tocado foi feito pelo Procuradora da República em São Paulo a partir deste ano. Nele, está sendo investigado se a G2P comete fraude e propaganda enganosa ao anunciar o que promete na atração.

A antiga relatora do processo, a procuradora Denise Túlio, diz nos autos que o Top Game “não se enquadra no conceito de concurso cultural”. Além disso, juntando as várias reclamações no MPF e nas redes sociais, “também não é possível dizer que o programa Top Game é uma distribuição gratuita de prêmios”, conclui a magistrada.

Para Denise, a relação entre os dois é de consumo e, no documento, ela salienta que “a deficiência é mesmo a falta de informação do tipo de serviço oferecido e seus custus violam o direito à informação, à transparência e a vedação de propaganda enganosa, dando ensejo à condenação dos responsáveis, ao ressarcimento dos valores despendidos pelos consumidores e ao pagamento de indenização por danos morais”.

Por fim, neste processo, a procuradora vê um claro dano moral coletivo. Considerando inapta para jugar algo nesse sentido, já que se trata de defesa/proteção ao consumidor na visão da PR de São Paulo, a decisão para um pedido de retirada desses programas do ar ficou para a 3º Câmara de Coordenação e Revisão do MPF. A última atualização de tal processo aconteceu em agosto desde ano, e ele ainda segue em curso.

O fato é que os órgãos públicos estão agindo. Silenciosamente, de forma devagar, mas estão agindo firme e forte. Muito em breve, certamente, esse tipo de atração deverá sair do ar. Mas até quando elas continuarão comprando espaço na TV brasileira? Ninguém sabe.

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