Há 35 anos, novela das sete discutia a posição das mulheres com humor e irreverência

Publicado em 08/06/2018

Ao ser convocado pela Rede Globo a escrever uma nova novela das 19h em 1983, Silvio de Abreu se propôs a contar uma história diferente, que falasse das discussões sobre machistas e feministas, com Tarcísio Meira e Glória Menezes interpretando não o casal tradicional, mas um que vivia em pé de guerra, e unir pela primeira vez Paulo Autran e Fernanda Montenegro, com direito a torta na cara entre eles até. A ousadia era muita, tanto pela época quanto pelos nomes cogitados – e que aceitaram prontamente ao convite de Silvio quando este lhes expôs suas ideias para o novo trabalho.

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A família Alcântara em Guerra dos Sexos: Felipe (Tarcísio Meira), Juliana (Maitê Proença), Analu (Ângela Figueiredo), Charlô (Fernanda Montenegro) e Otávio (Paulo Autran)
A família Alcântara em Guerra dos Sexos Felipe Tarcísio Meira Juliana Maitê Proença Analu Ângela Figueiredo Charlô Fernanda Montenegro e Otávio Paulo Autran

Guerra dos Sexos estreou em 6 de junho de 1983 e tinha como personagens principais dois primos, namorados na juventude, mas que a vida e as diferenças afastaram. Charlotte de Alcântara Pereira Barreto, ou Charlô (Fernanda Montenegro), é uma mulher moderna, jovial, que não aparenta a idade que tem nem se prende aos estereótipos de esposa e mãe. Casou-se algumas vezes, sempre fez o que quis, onde quis e com quem quis e viveu as alegrias da maternidade aos 18 anos, quando adotou um órfão. Já Otávio de Alcântara Rodrigues e Silva (Paulo Autran) é o típico rico esnobe, pedante, machista, que nunca superou o insucesso amoroso com a prima e, por isso, nunca se casou, embora tenha tido igualmente vários romances. Os dois se reencontram quando o tio Enrico morre e deixa para ambos sua grande fortuna, dividida igualmente entre os dois, sob uma condição: eles devem dividir a mesma casa e administrar juntos a cadeia de lojas de departamentos da família, que leva o nome Charlo’s. Sócios pelo resto da vida.

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Além da convivência difícil, que expõe todos os preconceitos e birras de ambos e é carregada de tensão sexual, insatisfeitos com as condições do testamento eles fazem uma aposta: durante 100 dias as mulheres administrarão as lojas, e mediante um aumento significativo dos lucros que Charlô se compromete a conquistar, caso isso se concretize ela fica com a metade da fortuna destinada a Otávio. Caso contrário, ele é quem fica com tudo para si.

A disputa nas empresas leva a uma divisão radical entre homens e mulheres, que não podem se misturar em suas atividades e, menos ainda, se envolver. Felipe (Tarcísio Meira), o filho adotivo de Charlô, casado e descasado várias vezes, vê nisso uma grande dificuldade para seu romance com Vânia (Maria Zilda Bethlem), executiva das lojas, de total confiança da mãe. Otávio e Felipe lideram a ala masculina, enquanto Charlô e Vânia, a feminina. As boas ideias de um lado vão sendo sabotadas pelo outro, e especialmente as confecções Ravello Sport, de propriedade de Roberta Leone (Glória Menezes), fornecedora exclusiva das Charlo’s, se ressentem dessa disputa, já que para prejudicar Otávio trama contra a empresa dela para prejudicar Charlô e, com isso, tomar posse da outra metade da herança.

Em meio à disputa de Cumbuca e Bimbo, os apelidos pelos quais Charlô e Otávio se chamam, existe a figura de Carolina (Lucélia Santos), sobrinha de Roberta. Ela é filha de Nieta (Yara Amaral) e Dinorá, o Dino (Ary Fontoura), que na juventude foi apaixonado por Roberta e trabalha com ela na Ravello. Carolina é aos olhos de todos um anjo de candura, mas na verdade não passa de uma mau-caráter da pior espécie, capaz de prejudicar qualquer pessoa para atingir seus objetivos, inclusive a própria tia, ao atuar do lado dos homens na disputa da Charlo’s e sabotar um desfile muito importante. Ambiciosa e oportunista, ela se envolve com Felipe, depois de ser capaz de tumultuar a vida do fotógrafo Fábio (Herson Capri) e de Juliana (Maitê Proença), filha de Felipe, amante de Fábio, que é casado com Manuela (Ada Chaseliov), ciumenta e insegura.

Ao desenvolver uma história que tratava da briga entre homens e mulheres e da luta feminina por seu espaço na sociedade, machista e misógina, Silvio de Abreu tomou o lado que na ocasião era o fraco, o das mulheres, e compôs personagens femininas fortes, bem definidas em seus ideais e princípios e em luta constante contra os preconceitos e impedimentos dos homens a seus anseios, nos quais eram boicotadas pura e simplesmente pelo fato de serem mulheres. Personagens que viviam sua sexualidade sem barreiras morais ou sociais, como Vânia, que transava com quem queria – embora, diga-se, não fosse volúvel, e tenha tido ligações com Felipe e Ulisses (José Mayer), lutador de boxe amador e empregado das lojas – e a própria Roberta, que se apaixona por um homem mais jovem, Nando (Mário Gomes), o motorista de Otávio.

Glória Menezes e Mário Gomes em Guerra dos Sexos
Glória Menezes e Mário Gomes em Guerra dos Sexos

Guerra dos Sexos influenciou decisivamente muitas de suas sucessoras no horário e marcou a reformulação do perfil da faixa das 19h, com histórias mais cômicas do que românticas e sem medo de ousar na abordagem de questões mais sérias, porém com humor e picardia. Cinéfilo de carteirinha, o autor Silvio de Abreu criou uma novela movimentada, divertida, que a certa altura envolve quase o elenco inteiro na busca por um valioso diamante que Vitório (Carlos Zara), o marido de Roberta que morre no primeiro capítulo, havia comprado e que era disputado por vários personagens, especialmente pela viúva, por Otávio e pela amante de Vitório, a dissimulada Veruska (Sônia Clara), que fingia ser amiga de Roberta.

Recursos como as citações a outras obras do cinema e da TV e os atores olhando para a câmera, falando diretamente para o público, foram testados na novela e aprovados pela audiência, como quando Nieta dizia que Felipe era muito parecido com Tarcísio Meira, ou Paulo Autran fez referência a ele mesmo como um ator que ele “pensava ser realmente italiano” ter interpretado o papel de Bruno Baldaracci em Pai Herói (1979), novela de Janete Clair.

Dirigida por Jorge Fernando e Guel Arraes, a novela teve ainda em seu elenco as presenças de Marilu Bueno, Edson Celulari, Helena Ramos, Cristina Pereira, Diogo Vilela, Ângela Figueiredo, Leina Krespi, Fernando José, Wilson Grey, Tereza Sodré e Paulo César Grande, além de participações especiais como as de Regina Duarte, Renata Sorrah, Suely Franco, Susana Vieira, Aracy Balabanian, Renée de Vielmond, Irene Ravache, Eva Wilma, Lilian Lemmertz, Jacqueline Laurence, Carlos Vereza, Felipe Carone, Nélia Paula, Rosita Thomaz Lopes e Nildo Parente.

Nesses 35 anos, apesar da clássica cena do café da manhã com muita ironia e comida voando de um lado a outro da mesa de Cumbuca e Bimbo ter sido reprisada incontáveis vezes, a novela em si teve apenas um repeteco: em 1989, na faixa vespertina Sessão Aventura, que normalmente apresentava enlatados.

Em 2012/13, para marcar os 30 anos da novela Silvio de Abreu desenvolveu uma nova versão, com Irene Ravache, Tony Ramos, Edson Celulari, Glória Pires, Bianca Bin e Reynaldo Gianecchini nos papéis de Charlô, Otávio, Felipe, Roberta, Carolina e Nando, respectivamente. Essa versão não agradou como a primeira, por uma série de motivos – especialmente dois: a tardia percepção de que era necessário modificar elementos da história para adequá-la aos novos tempos, que seguem com a mulher obrigada a ter que provar sua competência diante do mundo dominado pelos homens, mas também mais presente no mercado de trabalho e com voz mais ativa na sociedade do que nos anos 1980, não mais restrita basicamente às funções de esposa, mãe e “do lar”; e a escalação de um elenco bastante convencional para produções do horário, na contramão do elenco original, que foi pensado para as combinações desejadas pelo autor na trama e cujos integrantes influenciavam-no decisivamente na condução da trama. Atualizada para os conflitos do começo do século 21 e com um elenco diferente, quem sabe Guerra dos Sexos não tivesse marcado época novamente?

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