Ana Flávia Cavalcanti: Bissexual e negra, atriz fala sobre a importância de discutir feminicídio e racismo na TV

Publicado em 15/04/2019

A trajetória de Ana Flávia Cavalcanti na TV ainda é pequena, mas consistente. Depois que integrou a elogiada Além do Tempo, a atriz embarcou em Malhação – Viva a Diferença – ganhadora do Emmy Kids Internacional 2018. Logo em seguida entrou para e o elenco de A Garota da Moto, SBT, como a vilã Naomi, presa por corrupção e que atormenta a vida da protagonista, Joana, interpretada por Christiana Ubach.

Em entrevista exclusiva ao Observatório da Televisão, Ana Flávia falou sobretudo dos desafios que um artista precisa enfrentar para levar ao público emoção, diversão e reflexão. No bate-papo, a atriz falou sobre sua sexualidade e a forma como escolhe seus personagens.

Na luta contra o racismo, femincidio e por consequência o machismo, a atriz revelou: “Sou bissexual, numa relação homoafetiva, e tomo muito cuidado na escolha das minhas personagens e na relação que tenho com as mulheres em minha vida”. Ana ressaltou que há poucos profissionais negros na TV, no cinema e no teatro e com a participação deles as histórias teriam outros contextos.

Além de se destacar no SBT, a artista segue surpreendentemente em cartaz como a depende química Diana na terceira temporada da série médica da GloboPlay. Na TV, Sob Pressão tem previsão de estreia para maio. De acordo com Ana a literatura, o teatro e a busca por informações aprofundadas nos jornais e em séries lhe ajudam a compreender mais o universo das histórias que interpreta na televisão.

Confira!

Como se preparou para interpretar uma presidiária? Aliás, já frequentou alguma penitenciária?

Já frequentei esses ambientes sim. Estive em uma penitenciária para fazer laboratório, o que foi bem interessante para construir a Naomi. Estudei lutas e também assisti aquela série de detentas da Netflix, Orange Is The New Black.

Naomi comete maldades contra uma mulher e seu filho, algo bem chocante, mas que diariamente vemos na TV. Como relacionar então dramaturgia e realidade? A principio o que o público pode esperar?

De fato a Naomi é uma mulher bem agressiva na série. Inclusive já foram ao ar uma sequência de ataques mais diretos da Naomi à Joana. Ao analisar a Naomi, é importante lembrarmos que ela havia cometido um crime de corrupção passiva no trabalho, caixa dois, e foi presa. A partir do momento que ela vai presa, as coisas vão piorando. 

Precisamos refletir sobre o sistema carcerário no Brasil e essa política pública de segurança que é defasada e não melhora o preso. A maioria dos presos saem piores do que entraram. Temos prisões com celas superlotadas, o (a) preso (a) fica lá numa inércia, numa vida meio sem foco e muitos não têm uma escolaridade mínima exigida, são pessoas com pouco recurso. Precisamos destacar a questão da condição de vida à qual o preso está submetido tanto quanto a da violência em si.

Questões sociais

É importante falarmos da violência, mas acho também pensando no recorte do sistema carcerário e no tanto que a sociedade também não colabora, como um todo, para cuidar dessas questões que são de interesse público. Acho fundamental dizer que a maior parte da população carcerária é formada por homens e mulheres negras. Isso revela um sistema ultra racista de base e também que a população negra é a mais deixada de lado, mal cuidada e que não é inserida de fato na sociedade.

Um outro exemplo do descaso da sociedade está relacionado aos dependentes químicos – que é o caso de Diana [Sob Pressão, Globo] outra personagem que tive o desafio de interpretar. É um problema de saúde pública, é um problema de todo mundo. Se temos uma epidemia de usuários de droga, muita gente que consome droga, crack e muito álcool, isso acaba refletindo em todas as relações. Essas pessoas acabam tendo problemas com o bem estar próprio, e também na relação com a família e na sociedade. Essa dependência abre para outros problemas. 

Bandeiras

É possível levantar bandeiras sobre esses conflitos como uma forma de alertar a população? 

Precisamos discutir de um modo geral a construção dessas personagens nos roteiros. Ainda temos muitos conflitos entre mulheres, que se dão a partir, quase sempre, de uma mulher que gosta de um homem, que gosta de uma outra mulher. Ficamos orbitando muito o homem. É um pouco isso que acontece no caso da Naomi. 

Ela tinha uma relação com o Ivan e ele a denunciou para a polícia, fazendo com que ela fosse presa. E a Naomi considerou isso uma grande traição. Quando ela sai da cadeia, depois de ter sido presa diversas vezes, ela está com sangue no olho e quer se vingar do Ivan. 

Enquanto a questão da Bernarda é ligada à Joana, a da Naomi está relacionada ao Ivan e ela encontra, na Joana, uma maneira de atacá-lo indiretamente. O conflito gira bastante em torno desse amor mal resolvido e da sede de vingança por esse ex-marido. E nós já vimos esse tipo de relação várias vezes na televisão e nas séries. 

Relações humanas

Temos outros caminhos pelos quais seguir, principalmente enquanto mulher. Sou bissexual, numa relação homoafetiva, e tomo muito cuidado na escolha das minhas personagens e na relação que tenho com as mulheres em minha vida. Acredito que precisamos nos fortalecer cada vez mais. Temos inúmeros casos de violência contra a mulher, pelo simples fato de a pessoa ser uma mulher. Machismo que vai a mil, a misoginia que não tem fim, feminicídio, estupro e violência doméstica. 

Uma mulher não pode sair de shortinhos na rua que é praticamente devorada com os olhos pelos homens – e não importa a idade. Tenho uma sobrinha de 14 anos que, quando a gente sai, é surreal o jeito que os homens olham pra ela. Embora ela seja grande e alta, é apenas uma criança. Estamos numa sociedade que fomenta e incentiva os meninos desde pequenos a desejarem as mulheres como se elas fossem um pedaço de carne. 

Oportunidades

Ficou algum aprendizado sobre os conflitos apresentados na série que a Ana vai levar pra vida?

Antes de tudo vou levar para a minha vida a relação estabelecida com as pessoas com quem tive o prazer de trabalhar: Julia Jordão, João Daniel, Caroline Fioratti, que foram diretores da série e todo o elenco, principalmente a minha relação com a Chris que foi muito boa. Nos tornamos grandes amigas e espero que fiquemos juntas e próximas e que nos encontremos em outros trabalhos em breve. 

Como experiência de trabalho, foi enriquecedor. Eu tinha terminado de fazer Malhação e já entrei no set de A Garota da Moto, então vim de fluxo de filmagens e sets de um ano seguido. A Naomi é uma personagem grande na trama, então também tive muitas diárias e foi um desafio, porque eu nunca tinha feito uma série de ação. Levo comigo também a gratidão por de fato de poder praticar o ofício que eu amo tanto, que é o de atriz. Em qualquer profissão, quanto mais a gente faz, mais a gente aprende – e com a minha não seria diferente. 

Inegavelmente, Naomi é uma das poucas vilãs negras da teledramaturgia brasileira: contextualize, por favor.

No geral temos menos atores negros em todos os tipos e escalações. Não são só poucas vilãs negras, são ainda menos protagonistas negras e negros, assim como personagens familiares e mesmo personagens coadjuvantes. Mesmo assim, quando existem personagens negras, afrodescendentes, em geral elas são pano de fundo para a história que se desenrola, estão servindo mais para ajudar a contá-la.

Artistas

Em encontros da comunidade negra, de artistas negros e negras com quem me relaciono, temos praticado essa fala e temos pautado cada vez mais nas produções em que estamos inseridos a presença de mais, mais e mais atores, atrizes, artistas, diretores, roteiristas e figurinistas negros. Não é apenas ter poucos artistas negros, falta roteirista negro. O trabalho começa mesmo na escritura do roteiro. Hoje em dia, temos as mais diversas temáticas nas produções, mas poucas feitas por roteiristas negros, e isso altera muito as perspectivas do que é contado. 

Eu mesma ando tendo a experiência de escrever. Redigi o roteiro de um curta-metragem que foi contemplado em edital da SPCine [Prefeitura de SP]. Terminei o filme e agora estou enviando para festivais internacionais. Tive a oportunidade de escrever o roteiro de uma série para um núcleo de dramaturgia, coordenado pelo Marcelo Caetano e pela Anna Muylaert. Tenho me dedicado bastante à escrita de narrativas, contos e depoimentos, pois estou com um projeto de um livro para compartilhar as minhas experiências de trabalho. Hoje em dia, pensando na escrita, vejo que tudo começa no roteiro. 

Representatividade

Enquanto não tivermos mais roteiristas negros, dificilmente teremos mais atores e atrizes negros, tanto vilão quanto mocinho e mocinha, ou qualquer outro personagem. Quem escreve, escreve muito baseado nos atravessamentos, e pelo que move a pessoa, pela história de vida dessa pessoa, pelo que ela viu quando era criança, enfim… Acho que isso conta muito na hora de escrever uma história.

Alguma cena te emocionou mais? 

Foi a primeira cena que gravei que é uma sequência em um restaurante. Fiquei emocionado não pelo fato da cena em si, mas porque gravamos em um restaurante na Rua Joaquim Antunes [Centro de SP]. Há muitos anos, quando eu estudava teatro ainda, trabalhei nessa mesma rua, como hostess no Maní. Todo dia eu ficava lá fora, do outro lado da rua do restaurante em que gravamos, parada na porta, recebendo os clientes, e pensando na minha vida, na minha profissão. “Quando será? Será que um dia vou trabalhar como atriz?”. Às vezes tinha que faltar na aula para poder trabalhar no restaurante. Eu ficava ali fora, com o segurança, e eu olhando para aquele restaurante.

Volta ao passado

Aí dez anos depois, eu chego pra minha primeira diária. Tínhamos uma base por ali por perto, na Joaquim Antunes, e quando uma das produtoras finalmente me chamou pra ir pro set, era ali, naquele restaurante que eu via quando trabalhava no Maní. Foi um espelhamento, sabe? Dez anos depois eu estava do outro lado da rua, dessa vez vendo o Maní, como atriz, gravando uma série, interpretando uma personagem super legal e sendo bem recebida e bem quista pela produção da Mixer, que fez eu me sentir muito querida por todos ali. 

Foi muito emocionante! Foi uma espécie de realização de um sonho, que com o tempo eu vi materializar na minha frente, literalmente. Dez anos antes eu estava do outro lado da rua, pensando o que seria da minha vida, como ia me sustentar como atriz, se ia dar certo, se não era uma loucura e lá estava eu, uma década depois, no restaurante do outro lado da rua, gravando, então me emocionei demais! Foi muito especial pra mim.

Clichês

A Garota da Moto e Sob Pressão trazem pra você semelhanças na temática. Nesse meio tempo entre as gravações, quais cuidados tomou para não cair em clichês?

Não acho que A Garota da Moto e Sob Pressão trazem semelhanças na temática. A Diana é uma mulher mais frágil, carente, que se deixa levar pelo desapontamento geral da vida, e a droga chega nesse momento pra tapar um buraco.

Aliás, como tem sido o retorno do público em relação aos seus últimos trabalhos na TV, Sob Pressão e A Garota da Moto?

O retorno do público é muito legal. A Dóris é um divisor de águas na minha carreira, é antes e depois da Dóris. Foi uma personagem realmente enorme, grandiosa, uma educadora maravilhosa e tudo o que estamos precisando para a educação.

Tem sido muito legal agora com A Garota da Moto. As pessoas, principalmente os adolescentes, adoram e se identificam com a coisa da luta, um pouco a relação das três (Joana, Fang e Naomi) que vai se intensificar agora e remete às super heroínas, às lutadoras.

O público gosta e tem muito carinho por mim. Acho que a relação é bastante sincera, sou o que sou, não faço um tipo e não faço questão de deixar de ser quem eu sou por uma ou outra relação, e acho que o público sente. O público é inteligente demais.

Sucesso internacional

Malhação inegavelmente foi um marco na Globo e na TV por conta da repercussão e roteiro, direção e elenco. Como resultado conquistou um Emmy. Enfim, que balanço faz desta experiência que decerto marcou a sua vida?

Foi uma Malhação especial e tenho muita honra de ter participado. O Cao Hamburger é muito sensível com adolescente, tem essa mão boa pra tratar as temáticas adolescentes, então não me surpreende que o idealizador do castelo Rá-Tim Bum ter também esse sucesso em Malhação – Viva a Diferença. O elenco era muito afinado, as “five” – cinco garotas muito sensíveis, cada uma num universo –, o Mouhamed, que foi meu parceiro, Malu Galli,  Angelo Antonio, Lúcio Mauro Filho, Marcello Antony, Aline Faju, era um elencão. Foi um trabalho inesquecível! Temos um grupo da Malhação que falamos sempre, e até hoje ninguém consegue sair, porque foi um trabalho muito próspero para nós e de muito amor. 

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