Só para os fortes

Onde Está Meu Coração é retrato cru do drama dos vícios

Série do Globoplay mostra o drama familiar de quem enfrenta drogas lícitas e ilícitas

Publicado em 06/05/2021

A arte não tem obrigação de seguir o fluxo da realidade. Muito pelo contrário, seu encanto está em impactar nossos sentidos e emoções por meio de expressões artísticas que independem da experiência real. Mas também existem circunstâncias gerais que não podem ser ignoradas, ainda mais em audiovisual, e principalmente em televisão, onde há eco diário da atmosfera do momento.

Nesse sentido, uma série cheia de angústia, porém esteticamente impactante como Onde Está Meu Coração talvez não tenha escolhido o melhor momento para ser exibida, ainda mais em TV aberta – o primeiro episódio foi apresentado nesta semana na Tela Quente, para divulgar a chegada da série ao Globoplay.

Lembremos que, por exemplo, quando houve os atentados às Torres Gêmeas, estreias de filmes sobre tragédias aéreas e ataques terroristas foram suspensos por um bom período.

Nestes tempos de pandemia, com o mundo se alternando entre distanciamento, isolamento e noticiário diário de doença e mortes aos milhares, o mercado mundial de televisão e streaming está em busca de novas atrações ficcionais mais leves, de temas universais, não relativos a questões hospitalares.

Tanto que os grandes hits internacionais em entretenimento atualmente são shows, como o novo formato O Cantor Mascarado. E um documentário de natureza como o sutil Professor Polvo ganhou o Oscar.

Quando se leva em consideração o atual momento da dramaturgia da TV Globo, sem uma boa novela inédita e com o público ávido por novidades, esta situação fica ainda mais evidente.  O novo seriado não adota solução escapista na ficção e se propõe ao enfrentamento de situações duras. Foi pensado de forma atemporal e só assim poderá ser admirado.

Quem assistiu ao primeiro episódio de Onde Está Meu Coração deparou-se com uma trama pesada, angustiante, com cenas passadas em sala de emergência de um pronto-socorro.

A história, escrita a quatro mãos por George Moura e Sergio Goldenberg, trata do drama dos Meireles, uma família classe alta diante do vício em drogas lícitas (álcool) e ilícitas (crack, maconha). O casal Sofia (Mariana Lima) e Davi (Fabio Assunção) sofre com a condição da filha Amanda (Letícia Colin), jovem médica residente em um hospital, casada com o arquiteto Miguel (Daniel de Oliveira). Ela se vicia em crack e se droga no hospital em meio a atendimentos de emergência.

No Globoplay

Série original do Globoplay feita pelos Estúdios Globo, Onde Está Meu Coração tem dez episódios com locações diferentes das últimas produções da casa. São filmagens externas em pontos pouco enquadrados nas produções da Globo em São Paulo.

Há também cenas muito interessantes nas cidades de Santos e Guarujá, no litoral paulista, desde as praias, calçadão, comércio, com takes curiosos na região do porto. Chama atenção uma captação inusitada desde o mar até os contâiners na terra, com a câmera delicadamente acompanhando o balançar das ondas.   

Letícia Colin está fantástica na personagem, com uma caracterização forte e de muita entrega física. Depois do excelente desempenho de Grazi Massafera em Verdades Secretas, também como uma viciada que mergulhava nos horrores da crackolância, parecia difícil uma interpretação tão boa que alinhasse o drama orgânico ao mental do estado de dependência química sem vaidades.

A direção artística do seriado é de Luisa Lima, que tem muita sensibilidade para cenas de intimidade.  

Fábio Assunção (Miguel) e Mariana Lima (Sofia) estão também perfeitos como o casal que enfrenta a todo custo o desmoronamento da família, que na verdade já tinha problemas ocultos anteriores ao vício da filha. Cabe também destacar num elenco tão bom a atuação da jovem Julia (Manu Morelli), como a filha caçula.

A questão do enfrentamento e tratamento da dependência química permeia os episódios, mostrando como o drama da escolha individual pelo vício pode ser um caminho trágico e sem volta, independentemente da classe social dos usuários de drogas.

“Alguns dependentes químicos se curam pela religião, outros somente com força de vontade própria, outros com internação, mas, sobretudo, é o afeto a maior colaboração que pode existir nesses casos”, afirmou o coautor George Moura na entrevista de lançamento da série. “As redes de familiares e de amigos têm a capacidade de salvar as pessoas, e isso devemos entender por completo, de forma clara”, completou Sergio Goldenberg.

As performances dos atores, aliadas às belezas da filmagem e trilha sonora, são essenciais para enfrentar a dureza de um roteiro sem leveza. Não há qualquer alívio emotivo ao longo dos episódios e cada um dos capítulos é uma coleção de momentos difíceis até quase o desfecho, na reta final.

Ir de um episódio a outro é em si um processo de agonia, tal como o tratamento por que passa a protagonista. Chegar até o final neste momento é uma redenção também da audiência. Junto com a indicação da faixa etária (16 anos), deveria vir com o aviso: é só para quem está forte!

*As informações e opiniões expressas nessa crítica são de total responsabilidade de sua autora e podem ou não refletir a opinião deste veículo.

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