Apesar dos avanços, televisão brasileira ainda mostra desconfortavelmente LGBTs de forma inatural

Publicado em 23/06/2019

A 23ª Parada do Orgulho LGBT de São Paulo ocorre, ao longo deste domingo (23), na avenida Paulista. O evento promete reunir mais de três milhões de turistas e residentes da maior cidade da América do Sul. Tanta gente em um só lugar é essencialmente um recado de luta a um crescente conservadorismo hipócrita que assola o Brasil e o mundo nos tempos atuais.  

Não ao acaso, o tema deste ano da maior parada gay do mundo – assim como a de outras ao redor do planeta – é os 50 Anos de Stonewall, um marco para o ativismo LGBT. Foi em junho de 1969 que a polícia de Nova York invadiu o bar Stonewall Inn, em Manhattan, desencadeando um levante contra a opressão à comunidade gay, completamente marginalizada naquela época. Ali, de fato, começou o Orgulho e, com o tempo, a ideologia se espalhou pelo planeta.

No Brasil, apesar da grande celebração deste domingo, há motivos para lutar ainda mais. O país aparece como o que mais mata LGBTs, considerando todo o planeta. Não é fácil ser gay no Brasil e isso, claro, se reflete na produção televisiva brasileira, que se colocou historicamente como um instrumento de luta e clareador de ideias.

Abordagem equivocada

Jeca Gay - Moacyr Franco

Durante muitos anos, os programas de televisão passaram a incluir o homossexual como uma figura digna de risos. Se tornou um produto de diversão da hetero-normatividade – principalmente, claro, das atrações de humor. Apesar das transformações na forma como o LGBT é tratado na televisão – falaremos disso mais adiante – ainda na atualidade, em 2019, a TV aberta corresponde a uma parcela terrivelmente homofóbica de telespectadores. É tradicional, por exemplo, um personagem gay caricato tornar a sua orientação sexual o centro de qualquer piada.

Felizmente, as veias da homofobia, trasvestida de supostos valores conservadores, passaram a encontrar forte resistência. Artistas mais jovens, gays ou não, já encontram algum espaço para mostrar seu valor como criadores de conteúdos diversificados, inclusive críticos e divertidos. E até dentro de um contexto justificável e agregador de caricatura. Eles, claro, estão hoje no Multishow ou na Globo, por exemplo, graças a uma luta muito grande de outros personagens que se impuseram em tempos menos democráticos.

O tema nas novelas

A dramaturgia tem tido um papel fundamental nessa abertura, para que tramas com personagens LGBTs sejam, sim, contadas em alguns aspectos. As novelas, principal produto televisivo do país, se adiantaram, com muito cuidado, em tempos muito recentes. Na época da Ditadura Militar, nada disso seria possível e durante os anos 60, 70 e 80, décadas de forte consolidação da teledramaturgia brasileira, abordar a homossexualidade com naturalidade ou mesmo instruir a população – como era o papel das novelas naquela época e até hoje – era algo fora de questão.

As tentativas de ousar sempre foram cercadas de muitas críticas e precisaram de, realmente, muita atenção na abordagem para, mais que mostrar, naturalizar a questão, não ofender o homofóbico, chamado de conservador como forma de minimizar sua opressão social. Quer um exemplo? A novela Torre de Babel (1998), escrita por Silvio de Abreu, e exibida no antigo horário das 20h, na Globo, apresentou ao Brasil Leila (Silvia Pfeifer) e Rafaela (Christiane Torloni).

O casal foi consideravelmente rejeitado pela audiência, ainda que apenas apareceu em cenas corriqueiras do dia a dia. Isso foi suficiente para os criadores da produção optarem por limar as personagens e diminuir a rejeição à novela. Se havia ali uma proposta de realizar merchandising social, foi tudo por água abaixo por causa do moralismo.

Todo cuidado foi pouco

Depois disso, outras abordagens aconteceram, mas sempre de forma muito sutil. Na novela Senhora do Destino (2004), o escritor Aguinaldo Silva resolveu criar um casal lésbico. Se trata de Eleonora (Mylla Christie) e Jenifer (Bárbara Borges). Apesar de ser uma trama secundária, houve uma cautela excessiva para não afugentar o público. As personagens passaram a trama na base do ‘selinho expresso’.

O mesmo aconteceu com Selma (Carol Fazu) e Maura (Nanda Costa), de Segundo Sol (2018). As duas percorreram a maior parte da trama namorando ou casadas e o autor João Emanuel Carneiro segurou por muito tempo o beijo entre elas. Era um casal sem proximidade, sem qualquer naturalidade para evitar uma rejeição, de novo, do público.

Ainda na década passada, ocorreu o caso mais vexatório da história da televisão brasileira sobre esse tema. A Globo estava plena em audiência e poderia ter quebrado um tabu importantíssimo: o beijo entre dois homens em uma novela do horário nobre. A trama era América (2005), de Glória Perez. E o casal era formado por Júnior (Bruno Gagliasso) e Zeca (Erom Cordeiro). Um espetáculo midiático foi armado para o grande acontecimento no último capítulo. E ocorreu o quê? A emissora cortou a cena.

Por excesso de prudência, a Globo preferiu atender aos conservadores e adiou o acontecimento para muitos anos depois. O episódio foi tão frustrante que até hoje o beijo entre dois homens ou duas mulheres é notícia. Atualmente, na novela A Dona do Pedaço, os personagens dos atores Malvino Salvador (Agno) e Caio Castro (Rock) devem ter um envolvimento amoroso. E as questões sobre isso é sobre eles se beijarem ou não, o impacto que isso teria nos atores, pessoalmente.

Sexo entre dois homens na TV

Essa situação, em pleno 2019, deixa claro que, apesar de alguns avanços, como a cena de sexo entre dois homens em Liberdade Liberdade (2016), a naturalização do amor entre duas pessoas do mesmo gênero está longe de acontecer na televisão brasileira. Toda a composição do entretenimento no país opta – por moralismo ou não – pela espetacularização da questão.

Para piorar, os escritores não conseguem escrever cenas naturais entre casais gays. Isso porque criam para um público que pode, realmente, mudar de canal. Não ocorreu com Babilônia (2015), por exemplo? A rejeição foi tanta que o diretor de dramaturgia da Globo, Silvio de Abreu, conseguiu transformar uma obra promissora em algo impossível de assistir.

Parâmetro mundial

Curiosamente, as novelas brasileiras, apontadas como vanguardistas, ficam muito para trás quando tratam dessa questão. Os portugueses, com produções de menor orçamento e know-how em novelas do que os brasileiros, conseguem contar histórias mais naturais a cerca do tema. Quem viu O Beijo do Escorpião (2014) sabe disso. Os argentinos também saíram na frente.

E isso sem falar sobre as séries norte-americanas ou europeias. Nelas, tratar o beijo gay como evento seria algo completamente fora de propósito social. Lá os LGBTs são advogadas, professores, médicos etc, independentemente da orientação sexual. De fato, a produção de conteúdos para a televisão reflete o pensamento, o nível de educação, conhecimento do povo.

O Brasil não é um país somente conservador e hipócrita. É uma nação não preparada para avançar continuamente na questão da retratação das relações LGBTs na televisão. E pensar que, em 1963, ainda na época do teleteatro da TV Tupi, as atrizes Vida Alves e Georgia Gomide se beijaram. Por que não progredir, Brasil?

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